quarta-feira, junho 23, 2004
"Jazia num sonho acordado. As rachas no estuque amarelado do tecto e do alto das paredes pareciam penetrar-lhe no cérebro. Podia fachar os olhos e continuar a vê-las mesmo assim. Fissuras delgadas perturbando o completo vazio da sua mente corroída. Olhou para o coto enfaixado que emergia da manga curta da bata do hospital. Parecia um enorme polegar envolto em ligaduras. Interrogou-se sobre o que teriam feito com o seu braço e decidiu perguntar.
Quando a enfermeira trouxe o jantar disse: O que é que fizeram com o meu braço?
Ela fez girar o tampo da mesa e pousou-lhe o tabuleiro em cima. Arrancaram-lho a tiro, disse ela.
Isso sei eu. Só queria saber o que é que fizeram com o resto.
Não sei.
E está-se nas tintas, não está?
Estou.
Eu cá hei-de descobrir. Eu consigo. Quem é aquele tipo à porta o tempo todo?"
McCARTHY, Cormac (trad. Paulo Faria), "Filho de Deus", Lisboa, Relógio D`Água, 1994.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, junho 23, 2004