terça-feira, junho 22, 2004
Hijo de Dios
Na Primavera, Ballard contemplou um casal de falcões voando lado a lado e mergulhando pelos ares, as asas esticadas para cima, silenciosos e envoltos pela luz do sol para depois irromperem cintilantes acima das árvores e regressarem descrevendo um arco entre chamamentos agudos. Fitou-os à medida que se afastavam e aproximavam de novo, tentando ver se algum deles estava ferido. Não sabia como é que os falcões acasalavam mas sabia que todas as criaturas lutavam entre si. Abandonou a velha estrada de carroças no ponto em que esta enveredava pelo desfiladeiro e tomou um atalho que ele próprio mantinha, percorrendo a encosta da montanha para rever as paragens que em tempos habitara. Sentou-se com as costas contra uma rocha e absorveu o calor que emanava dela, o vento ainda frio fazendo tiritar os esparsos fetos do alto da montanha, fetos cinzentos e quebradiços. Observou uma carroça vazia subindo o vale abaixo de si, ouviu o seu tropel distante e quando a mula parou no vau o ruído da carroça imóvel continuou a ressoar, indiferente, como se o som criasse a substância, até lhe chegar todo aos ouvidos. Viu a mula bebendo e depois o homem no assento da carroça levantou um braço e partiram outra vez, agora em silêncio, afastando-se do ribeiro pela estrada acima e em seguida veio de novo o rumor distante e abafado da madeira a ranger.
Observou a lenta progressão de todas as coisas no vale, os campos cinzentos tornando-se negros e encordoados à passagem da charrua, o verde rebentando lentamente dos tramos das árvores. Ali acocorado deixou a cabeça a pender entre os joelhos e começou a chorar.
Jazendo acordado na escuridão da gruta pareceu-lhe ouvir um silvo como quando era rapaz e, deitado de noite na cama, escutava o pai na estrada regressando a casa a assobiar, qual flautista solitário, mas o único som era o do regato mergulhando na caverna para desaguar quem sabe se em mares desconhecidos no centro da Terra.
Nessa noite sonhou que cavalgava por bosques numa serrania não muito alta. Abaixo dele conseguia ver veados num prado onde o sol batia na erva. A erva ainda estava húmida e chegava à altura das espáduas dos veados. Sentia a espinha da mula gingando debaixo de si e tinha as pernas enganchadas à volta do corpo do animal. Cada folha que lhe roçava pela cara mergulhava-o mais fundo na tristeza e no pavor. Cada folha por que passava ficava irremediavelmente para trás. Elas corriam-lhe sobre a cara como véus, algumas já amarelas, as suas nervuras como ossos delgados quando vistas contra o sol. Tinha-se decidido a cavalgar em frente porque não podia voltar para trás e o mundo nesse dia era tão belo como noutro dia qualquer para a sua própria morte.
McCARTHY, Cormac (trad. Paulo Faria), "Filho de Deus", Lisboa, Relógio D`Água, 1994.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, junho 22, 2004