sábado, junho 26, 2004
Gente de Dublin de Joyce e uma Viagem por Nova Iorque de Dos Passos (1)
Dublin
"Encontrava-se em pé no meio duma grande balbúrdia, na estação de North Wall. Frank acenou-lhe com a mão e Eveline percebeu que falava com ela acerca da passagem. A estação regurgitava de soldados, com malas castanhas. Pelas largas portas da plataforma entrevia-se o barco, uma vasta massa escura com as vigias iluminadas. Eveline nada respondeu. Sentia-se fria, pálida e aflita, e só pedia a Deus que a dirigisse, que lhe mostrasse qual o caminho a seguir, qual o seu dever. O barco lançou um longo e estridente apito no nevoeiro. Se partisse, amanhã estaria no meio do mar com Frank, a caminho de Buenos Aires. As passagens estavam compradas. Poderia Eveline recuar, depois de tudo o que Frank fizera por ela? A sua aflição fez-lhe sentir uma náusea em todo o corpo, e continuou movendo os lábios em silêncio, numa ardente prece.
Um sino badalava no seu peito. Sentiu que Frank lhe agarrava uma das mãos:
- Vem!
Todos os mares do mundo vazaram-se sobre o seu coração. Frank arrastava-a para o mar. Eveline agarrou-se com toda a força das suas mãos à grade de ferro.
- Vem!
Não! Não! Não! Era impossível. As suas mãos estavam presasà grade de ferro. Do meio do mar subiu um grito de angústia.
- Eveline! Ewy!
Frank correu para bordo para que Eveline o seguisse. Já o haviam chamado, mas ele continuava a gritar. Ela apenas lhe mostrou uma face pálida e imóvel, como se fora um animal abandonado. Nos olhos, ele não encontrou sinal algum de amor, nem de reconhecimento, nem de despedida."
James Joyce, "Gente de Dublin".
Nova Iorque
"Vou contar-lhes um segredo muito importante... Charley, serve uma rodada a estes bons amigos meus, por minha conta, e bebe também um copo... Isto faz mesmo bem... Meus senhores, mais uma ilustração da peculiar predominância da sorte nas questões humanas. Meus senhores, o segredo da minha sorte... isto é verdade, posso garantir-lhes; os senhores mesmos poderão constatá-lo em artigos de jornais, revistas, discursos, palestras feitas nesses dias; houve um homem, que acabou por se comportar como um autêntico patife, que até escreveu uma história policial a meu respeito, chamada O Segredo do Êxito, que poderão encontrar na Biblioteca Pública de Nova Iorque, se se derem ao trabalho de a procurar... O swgredo do meu sucesso era... e quando ouvirem vão rir-se r dizer que Joe Harland está bêbedo, que Joe Harland é um velho idiota... Sim, vão mesmo... Durante dez anos, como ia dizendo, negociei com margens, comprei directamente, cobri acções de companhias de que nunca tinha ouvido falar, e acertei sempre. Fartei-me de juntar dinheiro. Tive quatro Bancos na palma da minha mão. Comecei a abrir caminho no açúcar e na guta percha, mas nisso estava adiantado ao meu tempo... Mas já estão a ficar nervosos por conhecer o meu segredo, pensam que poderiam usá-lo? Pois bem, impossível...Era uma gravatade seda azul que a minha mãe tinha tricotado á mão quando eu era rapaz... Não se riam, raios os partam... Não, não estou a inventar nada. É apenas mais uma ilustração da peculiar predominância da sorte. No dia em que eu fiz uma parada com outro tipo para comprar uns milhares de dólares de acções de Louisville e Nashville, usei aquela gravata. Subiram vinte e cinco pontos em vinte e cinco minutos. Foi só o princípio. Depois, gradualmente, comecei a notar que as vezes em que não usava aquela gravata eram as vezes em que perdia dinheiro. Ficou tão velha e esfarrapada que experimentei levá-la na algibeira. Não resultava. Tinha de a pôr, estão a perceber...? O resto é a velha história de sempre, meus senhores... Havia uma rapariga, raios a partam, eu amava-a. Queria mostrar-lhe que nada havia neste mundo que eu não fizesse por ela, por isso dei-lha. Fingi que era uma piada e ri-me, ah-ah-ah. Ela disse «Não serve para nada, está muito velha», e atirou-a para o fogo... Apenas mais uma ilustração... «Amigo, não se importa de me pagar uma bebida? Encontro-me inesperadamente privado de fundos esta tarde... Muito obrigado, senhor... Ah, isto anima uma pessoa outra vez.»"
John Dos Passos, "Manhattan Transfer" Europa-América.
posted by Luís Miguel Dias sábado, junho 26, 2004