sábado, junho 05, 2004
Esta semana com "O Independente": Urzes de Manuel Hermínio Monteiro.
"Quando Malraux perdeu o cigarro
«Fumemos como perdidos
escrevemos perdidamente» - Cesariny
Pode fumar-se ou não. Não há mérito maior em ser um apreciador de tabaco ou bebida. Mas cuidado - fiquem os não fumadores instalados em seu respectivo galho. Principalmente quando buscam descaradamente uma espécie de mais-valia cultural da sua proclamada abstinência, tornando-se juízes em causa alheia.
Quando, através de um verdadeiro processo de montagem estalinista, resolveram tirar o cigarro da boca de Malraux para depois imprimir o seu rosto nu selo de correio ficámos perplexamente pensativos. O rosto grande, de cabelos românticos, do antigo lutador pela liberdade em Espanha, do mais criativo ministro de cultura europeu, obscureceu-se. O olhar esmaeceu. Secou-se-lhe a boca. Melhor seria não termos conhecido antes a imagem original e talvez assim escapasse o gesto censório daqueles que persistem em «purificar» as mais originais expressões de vida. Além de castradores, são ignorantes. O «pensativo» cigarro tem sido o mais fiel amigo do escritor. É muitas vezes o seu mais precioso bordão ante o muro das palavras, os solitários espaços de encontro íntimo com a escrita. Que o digam os charutos de Hemingway.
Cardoso Pires, quando o desaire o internou e levou à experiência última conforme o livro De Profundis Valsa Lenta, confessava-me que, entre várias proibições impostas, os médicos haviam-lhe vetado o tabaco. Que não era grave. «O pior era ter de escrever sem a imprescindível companhia do cigarro.» O mesmo podia dizer Teixeira de Pascoaes, que deixou um stock no seu solar de Gatão. Albert Vigoleis Thelen, o alemão que viera visitá-lo a Amarante, tendo ficado depois oito anos em sua casa, narra que, em deslocações de ambos ao Porto, Pascoaes abastecia-se na Rua do Almada em quantidades tais que, em tempo de racionamento de guerra, a polícia o incomodou, chegando a pensar tratar-se de um açambarcado. Claro que isso não retirou a Pascoaes a preocupação metafísica, proclamando «Como é que um animal que fuma pode acreditar na eternidade?»
Nunca saberemos quanto a literatura é devedora do precioso fumo. Como outros pequenos e grandes vícios. Jean Cocteau ou Baudelaire que o expliquem. Pessoa, que juntava na encomenda quotidiana a garrafa de aguardente e diversos maços de tabaco, que imortalizou o Esteves, o dono da Tabacaria.
Foi ele, ou melhor, Álvaro de Campos quem melhor exprimiu o volátil prazer do tabaco. «Saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.» E mais categoricamente: «Depois deito-me para trás na cadeira. / E continuo fumando / Enquanto o destino mo conceder, continuarei fumando.»
E continuou mesmo, ignorando os malefícios psicológicos dos grupos de opressão antitabagista que, quem sabe, um dia destes, e podendo, não excluirão a hipótese de censurar o belo e longo põem «Tabacaria», como agora, tão diligentemente, retiraram o cigarro da boca de Malraux, como se se tratasse de um menino malcomportado.
Cesariny, ripostou a uma observação de que estava a fumar muito dizendo que «Não fumava muito, fumava sempre», estabeleceu uma curiosa relação entre o fumo e a poesia. Muito literalmente assim: «Eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa) num café da baixa por ser incapaz coitado deles / de escrever os meus versos sem realizar de facto / neles, e à volta sua, a minha própria unidade / - fumar, quer-se dizer.» E o poema prossegue como «o Armando, que escreve à minha frente / o seu dele poema, fuma que para Cesariny / (Mário) de Vasconcelos».
E agora confesso-vos eu. Este artigo poderia ter tido melhor epílogo se, exactamente na parte final, não se me tivessem acabado os cigarros. Meti o dedo no maço e... é uma tristeza! Acabo aqui.
In Epicur, n.º I, Novembro 1998."
posted by Luís Miguel Dias sábado, junho 05, 2004