terça-feira, maio 18, 2004
"Hoje é 17 de Julho, são duas da tarde, oiço música de Chet Baker, o meu intérprete preferido. Há pouco, enquanto me barbeava, olhei-me ao espelho e não me reconheci. A radical solidão destes últimos dias está a transformar-me num ser diferente. Seja como for, sinto-me bem com a minha anomalia, o meu afastamento, a minha monstruosidade de indivíduo isolado. Encontro certo prazer em ser arisco, em burlar a vida, em adoptar posturas de herói radical e negativo da literatura (isto é, em ser como os protagonistas destas notas sem texto), em observar a vida e ver que, coitada, não tem vida própria.
Olhei-me ao espelho e não me reconheci. Depois, pensei naquilo que dizia Baudelaire: que o verdadeiro herói é o que se diverte sozinho. Voltei a olhar-me ao espelho e detectei em mim algumas parecenças a Watt, aquele solitário personagem de Samuel Beckett. Tal como Watt, eu poderia ser descrito da seguinte forma: um autocarro pára à frente de três velhos repugnantes que o observam sentados num banco público. O autocarro arranca. «Olha (diz o segundo), é um balde de lixo.» «Não, (diz o terceiro), é um maço de jornais velhos que alguém atirou para ali.» Nesse momento o monte de restos avança para eles e pede para se sentar no banco com enorme grosseria. É Watt."
Enrique Vila-Matas, "Bartleby & Companhia", Assírio & Alvim.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 18, 2004