domingo, maio 02, 2004
"História Abreviada da Literatura Portátil" (1)
Andrew Wyeth, "Dodge's Ridge", 1947
"«Um ancião vê um morto sobre o qual cai a claridade da lua. Reúne um grande número de animais e diz-lhes:
«- Qual de vós, valentes, quer encarregar-se de passar o morto ou a lua para o outro lado do rio?»
«Apresentam-se duas tartarugas: a primeira, que tem as patas compridas, carrega com a lua e chega sã e salva à margem oposta; a outra, que tem as patas curtas, carrega com o morto e afoga-se.
«Por isso a lua morta reaparece todos os dias, e o homem que morre nunca mais volta.»
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Três homens compareceram diante de Uendé, para lhe expor as suas necessidades. O primeiro diz: quero um cavalo. O outro diz: quero cães para caçar na mata. O terceiro diz: quero uma mulher para medar prazer.
«Uendé dá-lhes tudo: ao primeiro, o seu cavalo; ao segun, os cães, e ao terceiro, uma mulher.
«Os três homens vão-se embora, mas vêm as chuvas que os deixam três dias retidos nos matagais. A mulher faz a comida para os três. Os homens dizem: regressemos à fala com Uendé. Chegam lá. Então todos lhe pedem mulheres. E Uendé concorda em transformar o cavalo em mulher, e os cães também em mulheres. Os homens vão-se embora. Mas a mulher tirada do cavalo é glutona; as mulheres tiradas dos cães são más, e a primeira mulher, a que Uendé dera a um deles, é boa: é a mãe do género humano.»
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«Noutros tempos o vento era uma pessoa, concretamente uma negra espectral. Transformou-se num ser com penas e voou porque já não podia andar com antes; com efeito, voou e foi viver para a montanha. De modo que voou. Noutros tempos matava missionários. Transformou-se num ser com penas, e então voou, e foi viver para uma gruta da montanha. Dorme nela, acorda cedo e sai; voa para longe; volta a voar para longe. Regressa a casa porque sente necessidade de ir buscar alimento. Come outra vez e outra, e outra; regressa a casa; de novo, volta a ela para dormir.»"
Contos da Antologia Negra de Blaise Cendrars citados por Enrique Vila-Matas in "História Abreviada da Literatura Portátil", Assírio & Alvim, 1997.
posted by Luís Miguel Dias domingo, maio 02, 2004