A montanha mágica

quinta-feira, maio 27, 2004

Hijo de Dios





"O tempo mudou de um dia para o outro. Com a chegada do Outono o céu tornou-se mais azul do que ele alguma vez vira. Ou se lembrava de ter visto. Ficava sentado durante horas no meio da junça batida pelo vento, com o sol nas costas. Como se armazenasse o calor dos raios contra o frio do Inverno cada dia mais próximo. Observava uma ceifeira debulhadora de milho rosnando através dos campos e ao cair da tarde era a vez dele e dos pombos se dedicarem à faina agrícola por entre os talos triturados e partidos e enchia então vários sacos que carregava até à cabana antes do anoitecer.
Na montanha, as árvores de folha caduca tingiram-se de amarelo e de tons de fogo, fenecendo depois numa nudez inapelável. Caiu um Inverno precoce, um vento frio agitou os ramos negros e estéreis. Sozinha na carapaça vazia da casa, de cócoras no chão, a criatura observava pelo vidro empoeirado da janela um caco de lua cor de osso repousando acima dos abetos negros da serrania, árvores de tinta-da-china que uma mão hábil esboçara em contraste com a penumbra mais clara dos céus invernais.
Um homem muito metido consigo próprio. Os que iam beber a casa do Kirby viam-no à noite na estrada, de ombros caídos e solitário, a espingarda pendendo-lhe da mão como se fosse algo de que não se conseguia desembaraçar.
Tornara-se magro e rancoroso.
Alguns diziam louco.
Uma estrela maligna velava por ele.
Postava-se nas encruzilhadas ouvindo os podengos dos outros na montanha. Uma imagem de arrogância vil iluminada pelos faróis dos poucos carros que passavam. O rasto de poeira destes envolvia Ballard, que bramia insultos ou resmungava ou lhes cuspia, os homens apertados uns contra os outros nos bancos de velhos sedans com armas e frascos de wiskey no meio deles e magros cães de levantar a caça enroscados no porta-bagagens.
Numa fria alvorada encontrou na rotunda da Montanha da Rã uma mulher com uma camisa de noite branca dormindo debaixo das árvores. Observou-a durante um bocado para ver se estava morta. Atirou uma pedra ou duas, uma tocou na perna dela. A mulher mexeu-se pesadamente, o cabelo cheio de folhas entrelaçadas. Ele aproximou-se. Conseguia ver-lhe os seios volumosos achatados sob o fino tecido da camisa de dormir e conseguia ver-lhe o tufo negro de pêlos ao fundo da barriga. Ajoelhou-se e tocou-lhe. A mulher contraiu os lábios frouxos. Abriu os olhos. As pálpebras pareceram abrir-se para baixo como as de um pássaro e os olhos estavam injectados de sangue. Soergueu-se subitamente, um cheiro adocicado a wiskey e a azedo emanado-lhe do corpo. Repuxou os lábios num rosnido de gato. O que é que queres, meu filho da mãe? disse ela.
Não tem frio?
E o que é que tu tens a ver com isso?
Não é nada da minha conta.
Ballard levantara-se e estava de pé ao lado dela com a espingarda na mão.
Onde é que tem a roupa?
Ele ergueu-se, cambaleou às arrecuas e caiu sentada nas folhas. Dpois levantou-se outra vez. Ali ficou vacilando para um lado e para o outro fixando-o com os olhos inchados e de pálpebras vagarosas. Filho da puta, disse. Buscava em volta com o olhar. Vendo uma pedra grande, lançou-se para ela e levantou-a penosamente, fazendo-a recuar alguns passos.
Os olhos de Ballard franziram-se. É melhor que deite essa pedra para o chão, disse ele.
Obriga-me se és capaz.
Já disse para a deitar fora.
Ela puxou a pedra para trás ameaçadoramente. Ele avançou um passo. Ela arremessou a pedra, atingindo-o no peito e depois cobriu a cara com as mãos. Ele esbofeteou-a com tal violência que a fez dar uma volta e ficar outra vez de frente para ele. Ela disse: já sabia que me ias fazer isto.
Ballard tocou com a mão no peito de deu uma olhadela rápida para baixo em busca de sangue, mas não havia nenhum. Ela tinha a cara mergulhada nas mãos. Ele agarrou a alça da camisa de noite e deu-lhe um bom pixão. O fino tecido rasgou-se à altura do peito. Ela tirou as mãos da face e segurou os restos da camisa. Tinha os mamilos duros e azulados por causa do frio. Pára, disse.
Ballard pegou numa laça de seda artificial e arrebatou os restos da camisa de noite. Ela perdeu o equilíbrio e sentou-se nas ervas calcadas e cobertas de geada. Ele dobrou a peça de roupa debaixo do braço e deu uma passada atrás. Depois virou-se e caminhou estrada abaixo. Ela ficou sentada no chão completamente nua a vê-lo afastar-se, chamando-lhe vários nomes, que não o dele."


McCARTHY, Cormac (trad. Paulo Faria), "Filho de Deus", Lisboa, Relógio D`Água, 1994.

posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 27, 2004

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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