segunda-feira, maio 17, 2004
"- Com todo o negócio que faz, madame - dizia Émile, num tom cantarolado - seria de pensar que precisasse de alguém que a ajudasse na loja.
- Eu sei... Mato-me a trabalhar; eu sei - suspirou a Sr.ª Rigaud, do seu banco junto da caixa.
Émile ficou silencioso durante longo tempo, olhando para o corte transversal de um presunto da Vestfália que jazia sobre uma placa de mármore junto ao seu cotovelo. Depois, disse timidamente:
- Uma mulher como a senhora, uma mulher bonita como a senhora, Sr.ª Rigaud, tem sempre amigos.
- Ah ça... Vivi muito, nos meus tempos... já não confio em ninguém... Os homens são todos uns brutos, e as mulheres, oh, com as mulheres não consigo entender-me!
- A história e a literatura... - principiou Émile.
A campainha por cima da porta tilintou. Irromperam na loja um homem e uma mulher. Ela tinha cabelos amarelos e um chapéu que parecia um canteiro.
- Billy, não sejas extravagante - dizia ela.
- Mas, Norah, precisamos de comer qualquer coisa... E no sábado já recebo.
- Nunca haverá dinheiro enquanto não deixares de jogar nos cavalos.
- Hei-de ir longe com o teu... Vamos comprar salsichão de fígado... Aquele peito de peru frio tem bom aspecto...
- Lambão - arrulhou a rapariga dos cabelos amarelos.
- Pára de te meter comigo, deixa-me tratar disto.
- Sim, senhorr, o peito de perru está muito bom... Também temos galinha, bem quente... Émile mon ami, cherchez moi uns de ces petits poulets dans la cuisine. - A Sr.ª Rigaud falava como um oráculo, sem se mexer do seu banco junto à caixa. O homem abanava-se com um chapéu de palha grossa que ostentava uma fita de xadrês.
- Está calorr esta noite - disse a Sr.ª Rigaud.
Está mesmo... Norah, devíamos ter ido para a ilha, em vez de ficarmos nesta cidade sem fazer nada.
- Billy, sabes perfeitamente por que não podemos ir.
- Não insistas no assunto. Já te disse que no sábado está tudo arranjado.
- A história e a literatura - prosseguiu Émile depois de os clientes terem saído com o frango, deixando a Sr.ª Rigaud com meio dolar de prata para guardar na máquina registadora... - A história e a literatura ensinam-nos que há amizades das quais nace, por vezes, um amor digno de confiança...
- A história e a literatura! - protestou a Sr.ª Rigaud rindo-se interiormente. - Hão-de servir-nos de muito."
John Dos Passos, Manhattan Transfer, Europa-América, 1994.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, maio 17, 2004