A montanha mágica

segunda-feira, abril 12, 2004

"O Anjo Mudo" 1





"A chama da vela espelhava-se na tampa do pequeno estojo dourado, uma luz opaca e morna que se reflectia na parede formando um desenho dançante, uma rosca trémula que queria fugir mas estava presa, bailando no meio de um círculo diminuto. A freira rezava recolhida, um monumento escuro feito de muitas pregas de tecido no meio do qual só a mão branca e larga, a bater devota no peito, parecia viva, emergindo três vezes do tufo e desaparecendo, finalmente, à terceira vez.
O padre abriu a tampa do estojo como se fosse um relógio: a mancha de luz na parede apagou-se, e a hóstia leitosa provocou um brilho de felicidade nos olhos da moribunda; ela tentou erguer as mãos e bater no peito, mas a dor paralisou-a; o seu corpo retraiu-se num espasmo, as suas entranhas pareciam contrair-se como um punho a fechar-se de raiva, contendo somente dor, dor louca e reprimida que, de súbito e totalmente, desapareceu, tão rapidamente que ela se assustou e se sentiu desvanecer: com uma velocidade tremenda, algo subiu, jorrou por cima da beira da mesinha-de-cabeceira, embebeu com violência a base do crucifixo e sujou uma vela, mas o jorro mais forte caiu no chão, por cima da beira da cama, formando uma grande poça que alastrava rapidamente, no meio da qual o sapato brilhante da freira formava uma ilha; era sangue, sangue muito escuro… (…)

Sentia-se fraca e sem dor durante um momento que lhe pareceu terno, até que o punho invisível se contraiu novamente no seu corpo, esse punho que encerrava alguma coisa de imaterial: a dor, esses nada mortal, que, por dabaixo da pressão desesperada, podia libertar-se e erguer-se novamente, veloz e jorrante: desta vez o sangue corria pastoso e pesado pelo seu leito e foi absorvido pelo lençol como tinta: um grande círculo negro.
O rosto do padre parecia estar isolado do corpo: a batina escura misturava-se com a escuridão e, no meio desta escuridão estava o seu rosto cansado e assustado, as suas mãos estavam postas rígida e correctamente à altura daquilo que deveria ser o seu peito…
«Abençoe-me mais uma vez», murmurou ela… (…)

O jacto quente e repugnante do sangue chegou-lhe ao nariz, provocou-lhe uma tontura; ele ergueu-se rapidamente, mas já não foi a tempo: a batina não estava completamente abotoada, a onda molhou o peito da camisa, escorreu, lenta, e ele sentiu-a pesada e húmida; ergueu-se, tirou o estojo dourado do bolso e olhou-o assustado: estava manchado; segurou-o com cuidado para que não caísse e esfregou o lado sujo na manga, amedrontado e agitado, enquanto via a freira debruçar-se com tanta violência sobre a cama que a chama das velas tremeu. A pequena silhueta da cruz aumentou, a sombra da diminuta trave oscilou no tecto durante alguns segundos, larga e escura, e depois a chama diminuiu, a grande sombra da cruz afundou-se com ela, reduziu-se, e ele viu uma outra sombra, a do apagador de velas. Parecia um grande capuz; desceu lentamente, abateu-se sobre a vela e ficou parada, escura, num canto, e a sombra do crucifixo saltou um pouco mais para a esquerda da cama onde agora só uma vela brilhava."


BÖLL, Heinrich (trad. Edições Asa), "O Anjo Mudo", Diário de Notícias, Lisboa, 2003.

posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, abril 12, 2004

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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