A montanha mágica

quarta-feira, abril 14, 2004

"ia a correr nua com uma matilha de cães atrás de mim"





- Esperaste muito tempo por mim?
- Muito mesmo.
- Perdoa-me, meu amor.
- Vou tentar.
- Amas-me?
- Sim [acenando com a cabeça]
- Quero ouvir.
- Amo-te!
- Mais uma vez.
- Amo-te [displicentemente]. Amo-te [beijando-lhe o pescoço]. Mas temos que falar seriamente. O que posso ser eu para ti? Deixa-me antes seguir o meu próprio caminho, que jamais poderá, seja como for, tornar-se o teu.
- És tudo para mim. A minha nova vida, na alegria e na infelicidade.
- Infelicidade?
- Sim. Para mim é uma infelicidade amar-te como te amo. Ainda que eu não te compreenda.
- Para ti não passo de um capricho. Mandaste-me rosas.
- Foi pelo teu primeiro concerto. Não recebi resposta nem agradecimento.
- Recebi outras rosas.
- Recordas-te do nosso primeiro beijo?
- Recordo-me de muitos beijos, beijos que me fizeram perder o fôlego.
- Só pensava em ti. Quando te vi, não era capaz de outra coisa senão de amar-te.
- E quando te peço que sejas minha, hesitas. Sim, és tudo para mim.
- E sabes como é que isso aconteceu?
Não conhecia a tua voz. Tive que a ouvir para saber se te podia amar. Fui ver-te. Ainda não sei como é que tive coragem.
- Que sorte eu estar em casa.

[…]

- Estou cansado. Andei na borga esta noite.
- Como de costume. Isso é necessário para ser artista?
- De qualquer das formas, para mim é uma necessidade. Estive com amigos. Jogámos às cartas com uns trafulhas. Mas eram uns trafulhas bem simpáticos.
- Também jogaste?
- Estava meio a dormir, a pensar num tema. Ainda o tenho na cabeça. Com base nele, fazia uma sinfonia, se tivesse coragem de começar.
- Erland, não devias andar pelos cafés dessa maneira. Fico em tua casa esta noite, sim?
- Recebi um convite.
- Para casa de quem?
- De um homem que acaba de montar um apartamento para uma rapariga. Chama-se Constanz. A inauguração é esta noite. Não quero falhar.
- Não vás.
- Porquê?
- Porque eu to peço.
- Também te pedi uma coisa.
- Erland, há tanta música em ti que pede para ser composta. Se continuares assim, ela acaba por morrer. Quato às tuas inspirações a tresandar a cerveja não têm o mínimo valor. Peço-te, como se tratasse da minha vida, que não vás.
- Vivo como posso e quero viver, está-me no sangue. Ainda que eu te prometesse, não deixaria de lá ir.
- Nesse caso, é melhor que não me prometas nada.
- Vivo de uma maneira intensa porque isso me agrada. E, amanhã, recomeçamos. Gabriel Lidman acaba de regressar do estrangeiro. Festejamos os seus cinquenta anos. Como se fosse uma proeza ter 50 anos.
- Então encontramo-nos. Eu também lá vou.
- O teu marido também vai?
- Vai.
- O político. E, em breve, também ministro.
- Estás a falar de um homem que não conheces.
- Perdão.
- Erland, tive uma longa conversa com ele. Recuperei a minha liberdade. Posso fazer o que me apetecer.
- O que queres dizer? [espantado e surpreso]
- Disseste-me que nunca poderia seguir pelo mesmo caminho que tu. Posso, sim. A partir deste momento quero apenas ser tua. Esta noite tive um sonho.
- Com que sonhaste?
- Que ia a correr nua com uma matilha de cães atrás de mim. Quando me apanharam, acordei. Foi então que compreendi que estávamos sozinhos no mundo.
Dá-me a tua boca. A tua boca adorada.
- Onde queres ir agora?
- A tua casa. Vamos.


Gertrude, Carl T. Dreyer.

posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 14, 2004

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