sexta-feira, abril 02, 2004
"Gostarás da Grécia"
Henri Rousseau. The Dream. 1910.
"Quando acordei e subi à coberta, o navio deslizava por um estreito apertado. DE ambos os lados havia colinas baixas e áridas, suaves outeiros de terra salpicados de violetas e de proporções humanas tão íntimas que faziam chorar de alegria. O Sol estava quase no zénite e o seu fulgor era ofuscantemente intenso. Encontrava-se precisamente naquele pequeno mundo grego cujas fronteiras descrevera no meu livro alguns meses antes de deixar Paris. Era como acordar e encontrar-me vivo um sonho. Havia algo de fenomenal na proximidade luminosa destas duas costas cor de violeta. Deslizávamos exactamente da mesma maneira que le douanier de Rousseau descrevera no seu quadro. Era mais que uma atmosfera grega: era poético e não pertencia a nenhum tempo ou lugar efectivamente connhecidos pelo homem. O próprio barco era o único elo com a realidade. Estava cheio até às amuradas de almas perdidas desesperadamente agarradas aos seus poucos haveres terrenos. Mulheres esfarrapadas, de peitos desnudos, tentavam em vão amamentar os filho pequenos que berravam desalmadamente; estavam sentadas no chão da coberta, num chiqueiro de vómito e sangue, e o sonho que iam atravessando nem lhes roçava as pálpebras. Se tivéssemos sido torpedeados naquele instante, teríamos passado assim, no meio de vómito, sangue e confusão, para o negro mundo inferior. Naquele momento rejubilei com o facto de ser livre de haveres, livre de todos os laços, livre de medo, e inveja, e maldade. Podia ter passado serenamente de um sonho para outro sem possuir nada, sem lamentar nada, sem desejar nada. Nunca tive maior certeza de que a vida e a morte são uma e a mesma coisa e nenhuma delas pode ser fruída ou abraçada se a outra estiver ausente."
MILLER, Henry (trad. Fernanda Pinto Rodrigues), "O Colosso de Maroussi", Lisboa, Livros do Brasil, 1996.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, abril 02, 2004