segunda-feira, abril 19, 2004
"Amor omnia."
"- É aqui que vivo como eremita. Esquecida, apagada. E é assim que me convém. Preciso de solidão e de liberdade.
- Como passas o teu tempo?
- Eu própria cozo o meu pão, conserto a minha roupa.
- Tens rádio?
- Tenho. É preciso acompanhar os tempos, saber o que se passa.
- Escrevi-te recentemente.
- É verdade. Está aqui a tua carta. Repara.
- Poderias ter-me respondido.
- Não, Axel. Não se pode escrever à máquina a um velho amigo.
Tens então ainda um pouco de amizade para comigo?
- Tive muito afecto para contigo. Tenho ainda muito afecto para contigo. Vem cá. [sentam-se e dão as mãos] Há quanto tempo é que íamos às aulas juntos?
- Para aí há uns 30 ou 40 anos.
- E a nossa amizade sobreviveu a todo esse tempo.
- Uma amizade que nunca foi amor.
- Mas tu foste para mim um grande amigo.
- Ainda és jovem. A tua pele é tão branca e lisa.
- Vou ter mais rugas e a minha pele empalidecerá. Sabes no que estou a pensar?
- Não.
- Queres que te entregue as tuas cartas ? Não há necessidade de uma pessoa estranha as encontrar e ler as palavras vindas do teu coração. Toma.
- Posso queimá-las?
- Essas cartas são tuas. Faz delas o que quiseres.
- Nunca pensaste em ecrever poemas?
- Até escrevi um poema. Um só. Está aqui. Queres que to leia? Tem 3 estrofes.
- Sim.
- "Olha-me
Sou linda ?
Não.
Mas amei.
Olha para mim
Sou nova?
Não.
Mas amei.
Olha para mim
Estou viva?
Não.
Mas amei."
A Gertrude, com 16 anos escreveu um evangelho de amor.
- Lembras-te das tuas próprias palavras? “A única coisa que importa na vida é amar.” “Amar e nada, nada mais.”
Continuas da mesma opinião? Não estás arrependida de nada?
- Não estou arrependida de nada, e mantenho o que disse. Nada mais há na vida do que a juventude e o amor. Axel, um dia às portas da sepultura, debruçar-me-ei sobre o meu passado. Poderei dizer a mim própria: Sofri muito, enganei-me muitas vezes, mas amei.
- Pensas muito na morte?
- Já comprei a minha sepultura. Sei que serei enterrada junto a uma amoreira. E ontem encomendei a pedra tumular. Até já arranjei uma inscrição.
- O teu nome suponho?
- Não, só lá inscriverão duas duas palavras: "Amor omnia."
- O amor é tudo.
- Sim o amor é tudo. E disse ao jardineiro para só lá deixar crescer a erva. Na Primavera haverá anémonas. Se passares por lá, colhe uma anémona e pensa em mim. Considera-a como uma palavra de amor. Que foi pensada, mas nunca pronunciada."
Gertrude, Carl Dreyer.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, abril 19, 2004