domingo, março 07, 2004
um post, duplo, para três mulheres.
uma rosa para a m.j.o. outra para a c.f. outra para a a.
"PASSEIO DE DOMINGO (I)
Era domingo e ele foi dar um passeio para se distrair. Enquanto passeava, rememorava com deleite gravuras de arte que uma vez, não sabia quando, vira expostas algures, e também poemas que lhe tinham ficado gravados na memória.
«Bom dia», cumprimentou-o um indivíduo num tom formal e sério, ainda que amigável: «Quando irá sair, por fim, o teu novo livro?»
«Há que ter paciência», respondeu o visado, e ajuntou que sentir-se um ser humano e dar passeios lhe parecia tão bonito como estar sentado a uma secretária e ter sucesso a vender livros.
Passou junto a uma manada de vacas que pastavam e continuou o seu caminho, banhado pela suave luz do sol, até avistar uma paisagem estimulante e saborosa. Dois gatitos mostravam-se regalados, empoleirados numa árvore. Uma mulher assomou a uma janela e disse-lhe:
«Quem quer que sejas, ajuda-me! Há pessoas que acham que eu já não sou nova. Querem impedir-me de sentir o prazer de viver e empurrar-me para uma impereterível velhice.»
«Quem é que quer fazer-lhe isso?»
«Os meus próprios filhos.»
O poeta – já o reconheceram decerto como tal – deu-lhe a seguinte resposta: «Acalma-te, vive uma vida tranquila, sê sensata, tudo o resto virá por si.»
Os jardinzinhos mal cuidados ostentavam ainda algumas flores. Um pouco mais à frente, o caminho começava a subir. Gente importante descansava sentada no seu próprio parque; algumas crianças divertiam-se a brincar; havia uns abetos que cercavam uma casa de ar muito digno, conferindo-lhe ainda maior dignidade; por detrás de uma porta envidraçada estava uma criada vestida com asseio. Algumas das janelas estavam abertas e ele, ao reparar nisso, pensou:
«Bem gostaria eu também de morar aqui e de poder saborear esta tranquilidade! Em paga disso, poderia talvez recitar uma novela, sem sentir o menor constrangimento e, ao mesmo tempo, tão cortesmente quanto possível.» É curioso como ele tinha sempre de dar largas à sua imaginação, como tinha sempre de fazer literatura quando andava a passear! Mas era isso mesmo que para ele, na realidade, constituía a riqueza desses passeios e os tornava sempre muito agradáveis. Mesmo junto à orla da floresta havia uma quinta, ao lado uma casa com uma oficina modesta de sapateiro, e a própria floresta respirava doçura."
WALSER, Robert (trad.Leopoldina Almeida), "A Rosa", Relógio D`Água, Lisboa, 2004, p.p. 12-15.
"Il Mestiere di Vivere di Cesare Pavese" (1)
"7 de Março de 1949
Ela diz: «A maneira como um homem se interessa, ou não, por uma mulher, pelas mulheres, revela todo o seu sistema de vida,» Tu dizes «dispenso-as», e assim te retrais perante todo o compromisso que te perturbe no teu trabalho. Um outro diz «não quero perder a virgindade, pois receio que assim a santidade me seja nterdita» e desta forma, por medo, desejaria travar a evolução da história. Um outro abandona-se, goza ingenuamente, e vê assim as suas relações quotidianas. Quem se compraz a analisar e a aviltar tudo o que pertence ao sexo, faz o mesmo com vida e na vida: degrada as coisas porque as considera como orgasmos materiais, etc. Estupidez banal."
PAVESE. Cesare (trad. Alfredo Amorim), "O Ofício de Viver", Relógio D`Água, Lisboa, 2004, p.p. 350 e 351.
posted by Luís Miguel Dias domingo, março 07, 2004