A montanha mágica

segunda-feira, março 29, 2004

"«Scriiic!» gritava. «Sou uma gaivota.»"



Alice Neel, Joe Gould, 1933. (at the Whitney)


"«A noite passada encontrei no Minetta Tavern um jovem pintor meu conhecido e a mulher dele», escrevia ele, «que me disseram que tinham ido há pouco a uma festa no atelier de uma pintora chamada Alice Neel, que é uma velha amiga minha, e que no decorrer da noite lhes tinha mostrado um retrato meu que ela fizera há alguns anos. Perguntei-lhes o que tinham achado. A mulher do pintor foi a primeira a responder: “É um dos quadros mais chocantes que vi na minha vida”, disse ela. E ele concordou. “Bem o podes dizer”, disse ele. Isto agradou-me muito, especialmente a reacção do rapaz, porque é um manda-chuva do abstraccionismo das primeiras filas da vanguarda e normalmente não se deixa impressionar por nenhum quadro, a não ser que não tenha o mínimo significado e tenha sido concluído uma meia hora antes. Posei para aquele quadro em 1933, já lá vão treze anos, e o facto de as pessoas ainda o acharem chocante quer dizer alguma coisa. Pode muito bem querer dizer que talvez tenha alguma coisa daquela qualidade que todos os grandes quadros têm em comum, o poder de durar. Talvez já lhe tenha escrito antes a falar neste quadro, ou talvez lhe tenha falado nele, mas não tenho a certeza. Se assim for, peço que me desculpe; a minha memória vai-me falhando. Há um bom número de quadros por aí pelos ateliers da cidade bem conhecidos da gente do mundo artístico, mas que não podem ser exibidos em galerias ou museus porque provavelmente seriam considerados obscenos e poderiam criar problemas à galeria ou ao museu, e este é um deles. Ao longo destes anos, houve centenas de pessoas que o viram, entre as quais muitos pintores que manifestaram o seu apreço, e tenho o pressentimento de que um destes dias, ao ver como as pessoas se vão habituando à chamada obscenidade, acabará pendurado na Whitney ou no Metropolitan. (…)

Depois apareceu o retrato de um homem pequeno, de barbas, ossudo, descarnado e de ombros caídos, completamente nu, apenas com uns óculos, e era o retrato de Gould. Era um quadro bastante grande, e Gould parecia quase em tamanho natural. O fundo era vago; dava a impressão de estar sentado num banco de madeira numa sauna, à espera do vapor. As mãos ossudas estavam poisadas nos joelhos ossudos, e percebiam-se claramente as costelas. Viam-se os órgãos sexuais masculinos no sítio normal, outros no sítio onde devia estar o umbigo, e outros ainda que surgiam do banco de madeira. Do ponto de vista anatómico, a pintura era fantasiosa e grotesca, mas não particularmente chocante; tirando a plétora de órgãos sexuais, era um estudo rigoroso e sóbrio de um homem subalimentado de meia-idade. O que era chocante era a expressão no rosto de Gould. De vez em quando, num dos seus poisos na Village ou numa festa, Gould ficava com tanta empáfia que se levantava de um pulo e desatava a correr pela sala, em vénias para as mulheres de todas as idades, tamanhos e graus de acessibilidade, pedindo-lhes que dançassem com ele e por vezes tentandp abraçá-las e beijá-las. Ao fim de pouco tempo, repelido de todos os lados, acabava por se cansar. Punha-se então a imitar o voo de uma gaivota. Saltitava, dava pulinhos, saltinhava, bamboleava-se, agitando os braços para cima e para baixo enquanto guinchava como uma gaivota. «Scriiic!» gritava. «Sou uma gaivota.»"


MITCHELL, Joseph (trad. José Lima), "O Segredo de Joe Gould", Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.

posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, março 29, 2004

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