quinta-feira, março 18, 2004
maya
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Bill Peronneau, Nude 2, 1979.
"A distância entre nós aumenta, mesmo quando a minha caneta hesita. Os motores roncam nos espaços entre as palavras, devorando os quilómetros, os hactares das quintas planas, grandes quadrados castanhos e verdes que desfilam por baixo da asa enquanto ela avança devagar. Fecho os olhos e vejo a nossa casa branca, os seus dois alpendres rsguardados e a comprida estufa envidraçada, o terraço a espreitar para o mae e as rochas da enseada – essas rochas cinzentas onde tu, a Pearl e eu tantas vezes fizemos piqueniques e que, quando o sol lhes bate nos veios, causam uma sensação de calor mesmo em Fevereiro -, o regaço ondeante do relvado e o canteiro de bolbos tão luxuriosos e eriçados de folhas agora que a Primavera chegou. (…)
Levantei metade do que havia nas nossas contas conjuntas, de todas as de que consegui encontrar extractos – a conta à ordem a 5,5%, a conta de poupança a 6,5% e a conta de capital em Bóston a 7,25% (suponho). Na realidade, levantei um bocadinho mais de metade, visto que os CD (certificados de depósito) ficam imobilizados seis meses de cada vez e tu tens a bom recato todo o dinheiro das participaç~oes do Plano Keogh (plano de reformas de profissionais e outros grupos) e do plano de reforma dos médicos, a respeito do qual foste sempre muito cauteloso e reservado (…)
uma das coisas que sempre me magoaram sem que o admitisse sequer para comigo mesma foi a tua tendência para chamares «teu» a inheiro que na realidade ganhámos juntos, visto que eu cuidava da nossa encantadora casa para realçar a tua imagem aos olhos dos teus pacientes e dos teus confrades e criava anossa filha virtualmente sem qualquerajuda, uma vez que tu estavas sempre no consultório por razões que durante anos não passaram pela minha pobre e inocente cabeça – para não mecionar que, enquanto tu mourejavas tão heroicamente (era o que todos me diziam a toda a hora) na escola médica e no internato, quem prescindiu de dois anos de faculdade e da hipótese de ter acesso a um curso de pós-graduação fui eu – esqueceste com certeza que tencionava especializar-me em filosofia francesa. De Descartes a Sartre – acho espantoso tudo quanto em tempos soube e depois esqueci, todo aquele ser e nada, e cogito ergo sum; a única coisa de que me recordo é de que a essência precede a existência – ou será o contrário? Seja como for, eu então adorava essas coisas e imaginava-me como Simone de Beauvoir ou Simone Weil, e em vez disso calhou-me ser professora substituta de Francês e Costura naquela pavorosa escola paroquial em Sommerville… (…)
Po que será que os Americanos pensam sempre que devem sentir-se culpados a respeito das suas coisas? Eu amava as nossas coisas. Coisas são aquilo por que nós lutamos, aquilo por que todas as ondas do ar nos dizem que lutemos – são a substância dos nossos sonhos, e depois, como Eva e Adão a digerirem a maça, temos de nos sentir tão culpados. Eu não me sentia, acho que não me sentia. Ao longo da minha década dos trinta anos fui escandalosamente feliz por ser eu, por ser parte de nós."
UPDIKE, John (trad. Fernada Pinto Rodrigues), "S", Livros do Brasil, Lisboa, 1991.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, março 18, 2004