sábado, março 20, 2004
"Gostarás da Grécia"
"Eu nunca teria ido para a Grécia se não fosse uma rapariga chamada Betty Ryan que morava na mesma casa que eu em Paris. Uma noite, enquanto tomávamos um copo de vinho, ela começou a falar das suas experiências de viajar pelo mundo. Escutei-a sempre com grande atenção, não apenas porque as suas experiências eram estranhas, mas também porque quando falava das suas andanças ela parecia pintá-las: tudo quanto descrevia ficava na minha cabeça comotelas acabadas de um mestre. Foi uma conversa peculiar a dessa noite: começámos por conversar a respeito da China e da língua chinesa, cujo estudo ela iniciara. Em breve estávamos no Norte de África, no deserto, entre povos de que nunca ouvira falar antes. E, subitamente, ela caminhava sozinha ao lado de um rio, a luz era intensa e eu seguia-a o melhor que podia sob o sol ofuscante, mas ela perdeu-se e dei comigo a vaguear numa terra estranha, ouvindo uma língua que nunca tinha escutado. (…)
Uns meses antes de rebentar a guerra, resolvi tirar umas longas férias. Para começar, há muito tempo que desejava visitar o vale de Dordogne. Por isso, fiz a mala e meti-me no comboio para Rocamadour, onde cheguei de manhã cedo, perto do ascer do Sol e com a Lua ainda a brilhar luminosamnte. Foi um rasgo de génio da minha parte percorrer a região da Dordogne antes de mergulhar no mundo luminoso e antigo da Grécia. O simples vislumbrar, em Domme, o negro e misterioso rio da bela fraga da orla da cidade é algo para ficar grato durante o resto da vida. Para mim, este rio, esta região pertence ao poeta Rainer Maria Rilke. Não é francesa, não é austríaca, não é sequer europeia: é o território do encantamento que os poetas demarcaram e que eles e só eles podem reivindicar. É o que existe mais próximo do Paraíso deste lado da Grécia. Chamemos-lhe o paraíso do homem francês, a título de concessão. Na realidade, deve ter sido um paraíso durante muitos milhares de anos. Acredito que deve tê-lo sido para o homem do Cro-Magnon, apesar dos vestígios fossilizados das grandes cavernas que apontam para condições de vida assaz desorientadoras e aterradoras. Acredito que o homem do Cro-Magnon se fixou aqui porque era extremamente inteligente e tinha um sentido do belo altamente desenvolvido. Acredito que o seu sentido religioso já estava também altamente desenvolvido e floresceu aqui apesar de ele viver como um animal nas profundezas das cavernas. Acredito que esta grande região tranquila da França será sempre um lugar sagrado para o homem, e que quando as cidades tiverem dizimado os poetas este será o refúgio e o berço dos poetas vindouros. Repito, foi muito importante para mim ter visto Dordogne: isso dá-me esperança para o futuro da espécie, para o futuro da própria Terra. A França pode um dia deixar de existir, mas Dordogne continuará a viver, do mesmo modo que os sonhos continuarão a viver e a alimentar as almas dos homens."
MILLER, Henry (trad. Fernanda Pinto Rodrigues), "O Colosso de Maroussi", Lisboa, Livros do Brasil, 1996.
posted by Luís Miguel Dias sábado, março 20, 2004