terça-feira, março 09, 2004
Dostoiévski na voz do Príncipe Míchkin
cara Charlotte: sobre a pena de morte:
"- Em Petersburgo? Quase nunca, só de passagem. Já antes eu não sabia nada daqui, mas agora, segundo dizem, há tanta coisa nova que mesmo quem sabe tem de aprender tudo de novo. Fala-se muito dos tribunais, aqui.
- Humm!... Tribunais. Tribunais são mesmo isso, tribunais. Então e lá fora? Os tribunais são mais justos ou quê?
- Não sei. Ouvi falar muito bem dos nossos. Além disso aqui não existe pena de morte.
- E lá, executam pessoas?
- Sim. Vi isso em França, em Lyn, o Schneider levou-me com ele.
- Enforcam?
- Não, em França decapitam.
- E como é, a pessoa grita?
- Nada disso! É um instante. Colocam a pessoa no sítio e cai da máquina uma espécie de faca larga, que se chama guilhotina, pesada, com força… A cabeça salta num piscar de olhos. Os preparativos é que são penosos. Enquanto lêem a sentença, preparam a pessoa, atam-lhe as mãos, levam-na para cima do cadafalso, um horror! O povo corre para ver, mesmo as mulheres, se bem que eles não gostem muito que as mulheres assistam.
- Aquilo não é para elas.
- Claro! Claro! Um tormento desses!... O criminoso era um homem esperto, destemido, forte, já de certa idade, de nome Legros. Mas, não sei se acredita, quando subia ao cadafalso chorava, branco como papel. Como é possível? Não é um horror? Quem é que chora de medo? Eu não sabia que um homem que nunca tinha chorado, note bem, um homem, não uma criança, um homem de quarenta e cinco anos, podia chorar. O que se passa na alma nesse instante, até que convulsões a levam? É uma profanação da alma e mais nada! Foi dito: «não matarás», mas, por ele ter matado, também o matam? Não, não é possível! Vi isso há um mês, e ainda hoje é como se o tivesse diante dos olhos. Sonhei com isso cinco vezes.
O príncipe animava-se a falar, o seu rosto pálido estava levemente corado, apesar de continuar a exprimir-se em voz baixinha. O camareiro seguia-o com um interesse aprovador e uma atenção ininterrupta: talvez fosse também homem com imaginação e tentativas de pensamento.
- Ainda bem que o sofrimento não é muito – observou -, quando a cabeça salta.
- Sabe uma coisa – replicou acaloradamente o príncipe -, fez uma bservação que toda agente fz, e a máquina, a guilhotina, foi inventada precisamente para isso. Mas, a mim, passou-me pela cabeça uma ideia: não será isso ainda pior? Pode parecer-lhe ridículo, até uma barbaridade, mas com certa imaginação esta ideia encaixa-se na cabeça. Pense só: por exemplo, a tortura, a tortura é sofrimento e feridas, dor física, logo susceptível, portanto, de distrair do sofrimento da alam; só padecemos das feridas do corpo, até à morte. Poque a dor principal, a mais forte, talvez não seja a das feridas do corpo, mas sabermos com certeza que dentro de uma hora, depois dentro de dez minutos, depois dentro de meio minuto, depois na hora mesmo, já, a alma vai partir do corpo e deixaremos de ser, e isso de certeza, o principal é que é de certeza. Quando pomos a cabeça debaixo do cutelo e o ouvimos a deslizar por cima da cabeça, esse quarto de segundo é o mais assustador. Sabe que isto não é fantasia minha, que muitos o disseram? Estou tão convicto do que digo que posso expressar abertamente a minha opinião. O assassínio por sentença é incomensuravelmente mais terrível do que o assasssínio cometido por um bandido. Aquele a quem os bandidos matam, a quem esfaqueiam à noite, na floresta ou noutro lugar qualquer, de certeza que tem a esperança, até ao último instante, de se salvar. Houve mesmo casos em que, já com o pescoço golpeado, ainda tinha esperança, ou corria, ou implorava. Mas ali privam o homem dessa última esperança, com que é dez vezes mais fácil morrer, cortam-na definitivamente; é a sentença, e todo o horrível tormento consiste em que é de certeza inevitável, e não existe nada pior do que tal tormento. Pegue num soldado e vá pô-lo em frente do canhão no campo de batalha e dispare contra ele: o soldado terá esperança até ao último instante; mas leia a esse mesmo soldado uma sentença definitiva, e ele enlouquece ou chora. Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem o enlouquecimento? Porquê esta profanação monstruosa, inútil, absurda? Talvez haja alguém a quem tenham lido a sentença, tenham deixado sofrer, e depois disseram: «Vai, estás perdoado.» Talvez esse alguém o possa contar. Desse tormento e desse horror também Cristo falou. Não, não se pode fazer isso a uma pessoa!"
DOSTOIÉVSKI, Fiodor (trad. Nina Guerra e Filipa Guerra), "O Idiota", Editorial Presença, Lisboa, 2001, p.p. 26 e 27.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, março 09, 2004