quinta-feira, fevereiro 05, 2004
um tronco de olaia com um botticelli dentro. um assalto. como termina? pernas para que vos quero. Pynchon. V.
Sandro Botticelli, The birth of Venus, DETAIL OF the face of Venus, c. 1485.
"Então isto é que é o Uffizi? – disse. – Nunca lá estive dentro. Pelos vistos, agora terei de lá ir. Para apalpar o terreno. E onde está o objectivo?
O Signor Mantissa apontou para o canto inferior esquerdo.
- Sala di Lorenzo Monaco – disse. Está aqui. Já tenho uma chave da entrada principal que mandei fazer. Três corredores principais: leste, oeste e um mais curto, unindo-os a sul. Do corredor a oeste, o número três, entra-se noutro mais pequeno aqui, assinalado «Ritratti diversi». Ao fundo, à direita, há uma única entrada para a galeria. Ela está pendurada na parede oeste.
- Uma única entrada que é também a única saída – disse o Gaúcho. – Não é bom. Um beco. E para abandonar o edifício propriamente dito, uma pessoa tem de voltar a percorrer todo o corredor leste até aos degraus que levam à Piazza della Signoria.
- Há um elevador – riu escarninho o Gaúcho. – É mesmo o que eu esperava de si. – Mostrando os dentes, inclinou-se para a frente. – O senhor já me propôs cometer um acto de suprema idiotice: descer um corredor inteiro, e descer ainda outro, para desembocar num cul-de-sac e voltar pelo mesmo caminho. Uma distância de… - fez uma rápida estimativa - … uns seiscentos metros. Para não falar nos guardas prontos a saltar em cima de uma pessoa, cada vez que ela passa por uma galeria ou vira uma esquina. E o senhor ainda acha que não chega de sítios onde uma pessoa possa ser apanhada. Não. Ainda propõe um elevador!
- À parte o facto dela ser enorme – imtrometeu-se Cesare.
O Gaúcho cerrou o punho.
- Grande, como?
- 175 centímetros por 279 – admitiu o Signor de Mantissa. (…)
- Capo di minghe! – abanando a cabeça, o Gaúcho sentou-se para trás. Com um visível esforço para controlar o seu génio, dirigiu-se ao Signor Mantissa.
- Não sou o que se pode chamar um homem pequeno – explicou com paciência. – De facto, sou bastante grande. E largo de ombros. Tenho a constituição de um leão. Talvez seja uma questão de raça, sou do Norte e talvez haja sangue tedesco nestas veias. Os tedeschi são habitualmente mais altos que os latinos. Mais altos e encorpados. Talvez um dia este corpo engorde de mais, mas agora todo ele é músculo. Pronto. Sou grandalhão, non è vero? Bom. Então deixe-me informá-lo de uma coisa… - a voz num crescendo violento - … debaixo do seu maldito Botticelli cabia eu e a puta mais gorda de Florença juntos. E ainda sobrava espaço paraa elefanta da mãe dela fazer de chaperone. Que raio? Como é que lhe pode sequer passar pela cabeça que se possa andar trezentos metros com um quadro desse tamanho? No bolso?
- Calma, commendatore – defendeu-se o Signor Mantissa. – Alguém o pode ouvir. Trata-se de um pormenor, asseguro-lhe, já previsto. O florista que Cesare visitou ontem à noite…
- Florista. Florista! O senhor deixou um florista entrar no seu segredo?! Não ficaria mais contente se publicasse as suas intenções nos jornais da tarde?
- Ele é de confiança. Apenas fornece a árvore.
- A árvore.
- Uma olaia. Pequena. Uns quatro metros, mais não. Cesare passou a manhã a escavá-la, para tornar o tronco oco. Por isso não nos poderemos demorar com a execução dos nossos planos, ou as flores lilases murcharão.
- Desculpe o que poderá parecer a minha espantosa estupidez – disse o Gaúcho -, mas tanto quanto percebo, o senhor pretende enrolar o Nascimento de Vénus, escondê-lo no tronco oco de uma olaia, transportar tudo ao longo de trezentos metros pejados de guardas que não tardarão a descobrir o roubo e sair para a Piazza della Signoria, onde, se calhar, acha que se pode perder por entre a multidão?"
PYNCHON, Thomas (trad. Rui Vanon), "V", Lisboa, Fragmentos, 1989, p.p. 142 e 143.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, fevereiro 05, 2004