A montanha mágica

sábado, janeiro 24, 2004

Thomas Pynchon, V, Cairo, Waldetar, Alexandria, Nita, V, Ibéria, "abóboras, a beldroega, os pepinos e a tamareira solitária, as roseiras e estrelas-do-natal de jardim."




"Waldetar não era de Alexandria. Nascido em Portugal, vivia nessa altura com uma mulher e três filhos no Cairo. Perto dos estaleiros da estação. O seu percurso, desde o país de origem, levara-o inexoravelmente para leste. Tendo escapado aos apertos dos sefarditas, voou até ao outro extremo, progressivamente mais obcecado pelas suas raízes ancestrais. Terra do Triunfo, Terra de Deus. Terra de sofrimento também. Atormentavam-no cenas de perseguição específicas. (…)

Waldetar, homem extremamente religioso, explicava a história já contada por seu pai, sob um ponto de vista de senso comum: se não se pode adivinhar o que um bêbado, muito menos se pode prever o que fará uma manada de elefantes encharcada em vinho. Para quê atribuir a explicação de tal acontecimento à intervenção divina? De intervenções dessas, Waldetar achava que já havia demasiadas na História. Todas elas eram por ele encaradas com horror e um sentimento bem presente de pequenez: o aviso feito a Noé acerca do dilúvio; o recuo do mar Vermelho; a fuga de Lot de Sodoma condenada. O homem, sentia ele, e talvez mesmo os Sefarditas, estão à mercê da Terra e dos seus mares. Quer um cataclismo seja acidente ou desígnio, todos precisavam de um Deus para os proteger.
Tempestade e terramoto não têm consciência. Nenhuma alma pode recomendar outra alma. Só Deus.
Mas os elefantes têm alma. Tudo o que se pode embebedar tem de ter alma, concluía. Talvez fosse esse, exclusivamente, o significado de «alma». Acontecimentos entre uma alma e outra não são da esfera de influência divina directa. Pertencem antes ao domínio da virtude e da sorte. (…)

Apenas parte do inventário do material aos olhos de qualquer passageiro, Waldetar era, na sua vida privada, uma curiosa mistura de filosofia, imaginação e contínua preocupação com vários tipos de relação: não apenas com Deus, mas também com Nita, os filhos de ambos e o seu passado pessoal. Não como resultado de um esforço intencional, mas de uma tradição oral, diz-se todos os visitantes da terra de Baedeker que, em Alexandria, os residentes estão todos disfarçados. Este segredo, tal como os outros, é bem guardado: que as estátuas falam (embora a de Mémnon em Tebas já tenha sido indiscreta ao nascer do Sol), que alguns edifícios do Governo endoidecem e s mesquitas fazem amor.” (…)

«A tua pele de vai de mal a pior», costumava ele dizer. «Tenho de começar a dar mais atenção aos borrachos franceses que passam a vida a fazer-me olhinhos.»
«Ainda bem», respondia ela. «Hei-de dizer isso ao padeiro quando ele vier dormir comigo amanhã. Sempre há-de ficar mais descansado.»
Era nas traseiras da casa de ambos que matavam as saudades do litoral ibérico: as lulas a secarem ao sol, redes suspensas debaixo de uma manhã ou tardinha de céu azul, gritos ou cânticos de marinheiros e pescadores bêbados atrás de armazéns incaracterísticos.
Era nas traseiras que essas recordações se tornavam irreais. Simbolicamente, esbatiam-se com o ritmo dos rodados nos carris, o «pouca-terra» de um hálito inanimado. Passado que quase renascera por entre as abóboras, a beldroega, os pepinos e a tamareira solitária, as roseiras e estrelas-do-natal de jardim. (…)

O vértice do triângulo verde é o Cairo. Quer dizer, se o comboio permanecesse quieto e o que se movesse fosse a terra, à direita o deserto arábico e à esquerda o líbio, o verde seria inexoravelmente estrangulado por ambos, até desaparecer e nos deixar na grande cidade. Dum modo semelhante e paralelo, o ânimo de Waldetar chegou a um ponto tão bisonho como o deserto.
«Se eles forem o que eu penso, que mundo será este em que é preciso atormentar crianças?»
Pensava, é claro, em Manuel, Antónia e Maria, as suas crianças."


PYNCHON, Thomas (trad. Rui Vanon), "V", Lisboa, Fragmentos, 1989, p.p.67 a 70.


Adenda: a imagem de Thomas Pynchon foi descaradamente retirada dos companheiros d` o companheiro secreto

posted by Luís Miguel Dias sábado, janeiro 24, 2004

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