terça-feira, janeiro 27, 2004
Sentado debaixo do grande terebinto XXIV
"- Não peques, Israel!
- Ah, Eliezer, ensina-me a temer a Deus e a adorar-Lhe o poder supremo! Ele faz-me pagar o nome, a benção e o amargo pranto de Esaú, e faz-mo pagar caro. Marca o preço segundo o Seu arbítrio e cobra-o sem mercê. Não tratou comigo e, do preço, não me deixou tirar aquilo que para mim é excessivo. Toma para Ele o que eu, no Seu entender, posso pagar e quer saber melhor do que eu quanto aguenta a minha alma. Acaso posso discutir com Ele de igual para igual? Não. Sento-me aqui nas cinzas e raspo as minhas feridas. Que quer Ele mais? Os meus lábios dizem: «O que o Senhor faz é bem feito.» Que isto Lhe baste. O que o meu coração sente, é comigo.
- Mas Ele lê também no coração.
- Não é culpa minha. Foi Ele que assim o determinou, e não eu. Teria feito melhor se deixasse ao homem um refúgio diante do poder supremo, para que pudesse murmurar contra o inaceitável e pensar a seu modo na justiça. O coração do homem seria o seu refúgio, a sua tenda de recreio. Quando fosse visitá-la, estaria bem enfeitada, varrida com a vassoura e com o Seu assento de honra preparado. Agora não passa de cinza misturada com lágrimas e uma imundície miserável. Que Ele se esquive ao meu coração para não se enxovalhar e fique com o que dizem os meus lábios.
- Não queiras pecar, Jaakob ben Yitzchak.
- Não estejas a debulhar as palavras, ó velho servo, porque são palha vã. Abraça a minha causa e não a de Deus. Ele é extraordinariamente grande e ri da tua solicitude, ao passo que eu não sou mais do que um montão de miséria. Não me fales de fora, fala-me com o coração, porque eu não posso suportar outra coisa. Sabes, compreendeste bem que José já não existe e não volta mais para mim, nunca mais? Só de pensares nisto é que podes entender o que diz o meu coração e não malhar em palha seca. Foi da minha boca que ele ouviu a ordem: «Vai a Siquém e inclina-te diante dos teus irmãos, para que eles voltem para casa e Israel não fique aqui como um tronco sem ramagem. Fui eu que exigi isto dele, e de mim, que decidi ser forte por ambos e o mandei sòzinho sem criados. Porque eu reconhecia que a loucura dele era minha e não ocultava a mim mesmo o que Deus sabia. Mas Deus ocultou-me o que Ele sabia, uma vez que me induziu a dizer ao menino «vai lá», e scondendo-me o Seu conhecimento dos ferozes propósitos. É esta a lealdade do Deus poderoso, assim paga verdade com verdade.
- Poupa ao menos os teus lábios, filho da mulher verdadeira!"
Thomas Mann, "O jovem José", Livros do Brasil.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, janeiro 27, 2004