quinta-feira, janeiro 08, 2004
LITERATURA
"Valparaiso"
"A cena está fracamente iluminada.
Teddy Hodell, apresentador do programa e figura secundária, sai de um dos lados e posiciona-se mesmo à beira da cena, no proscénio, ponto a partir do qual se dirige à assistência.
TEDDY
Por favor não aplaudam. Isto é só o aquecimento. As pessoas querem aplaudir mal me vêem. Compreendo. Querem aplaudir a minha correia do relógio, a minha ponte dentária. Querem ir atrás de mim até à casa de banho dos homens e observar-me enquanto me coloco numa postura marcial junto ao urinol, de ombros direitos. Sou o primeiro a compreender. Querem erguer os bebés para que eu os veja. Mas isto é apenas o aquecimento. Poupem as vossas energias e paixões para a Delfina e os convidados dela. Não que o aquecimento não faça parte do programa. O aquecimento é gravado e analisado. O aquecimento é de todo decisivo para a prossecução do nosso propósito. Levem as minhas palavras a peito. Estou aqui para declarar o quanto são especiais. Estou aqui para vos separar da tarefa lúgubre das vossas vidas de não público. Apelo-vos para uma hipervida de riso, lágrimas, ternura, sensações e safanões. Reparem bem. A Delfina retira vida literal da assistência. Se não são inspiradores, ela fica despojada de momentos emocionais. Se estão entorpecidos, ela fica sem ânimo e indistinta. A senhora esbate-se num vapor cinzento. Ponderem o significado central do vosso papel. Milhões globais a assistir em casa mas apenas uma amostra de público no estúdio. Estão aqui e agora, e produzem calor corporal. As câmaras varrerão a assistência no decurso do programa. Não só uma, mas muitas vezes. Apontem para vocês nos monitores gigantes. Entendo a necessidade disto. Encorajo a que aconteça. Acenem para vocês próprios. Vejam-se a transpor aquela barreira crítica para entrar num plano transcendente. Mas levem as minhas palavras, acaloradamente, a peito. A vossa apatia e falta de entusiasmo serão uma lâmina lisa espetada no coração desolado da senhora. Estou aqui para solicitar um último cuidado. Não batam palmas quando ela entrar. Usamos aplausos enlatados para a entrada da Delfina. Ajustamos o nível à disposição predominante, aos triglicéridos e ao açúcar no sangue dela. Fazemos corresponder o nível ao estado da ansiedade nacional e ao assobio do vento em zonas costeiras isoladas. Agora ouçam. Eperem. Que doces passos chegam, vindos da sombra profunda, furtivos e inquietentes? Que flautas de soberano deleite ressoam nos grandes salões?"
DeLILLO, Don (trad. Fernanda O`Brien), "Valparaiso", Lisboa, Relógio d`Água Editores, 1999, p.p.71 e 72.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, janeiro 08, 2004