quinta-feira, janeiro 22, 2004
LITERATURA
"MANHATTAN TRANSFER" V
Cap. II – metropolis
"Ed Thatcher estava inclinado sobre o teclado do piano, procurando as notas da Marcha do Mosquito. O sol da tarde de domingo atravessava, em nuvens de poeira, os pesados cortinados de renda da janela, contorcia-se nas rosas vermelhas da carpete, enchia a sala atravancada de pontos e estilhas de luz. Susie Thatcher estava molemente sentada junto da janela, observando-o com os seus olhos excessivamente azuis para o seu rosto lívido. Entre ambos, dando passos cautelosos por entre as rosas do campo cheio de sol da carpete, a pequena Ellen dançava. As duas mãozinhas erguiam os folhos do vestido cor-de-rosa e, de vez em quando, uma vozinha enfática dizia:
- Mamã, repara na minha expressão.
- Olha para aquela criança - disse Thatcher, continuando a tocar. - É uma autêntica bailarina de ballet.
As folhas do jornal do domingo tinham caído da mesa e jaziam sobre a carpete; Ellen começou a dançar em cima delas, rasgando-as sob os seus pezinhos ágeis.
-Não faças isso, Ellen querida - choramingou Susie, da sua cadeira de pelúcia cor-de-rosa.
- Mas, mamã, posso rasgá-las enquanto danço.
- Não faças isso, a mãe já disse.
Ed Thatcher tinha passado para a Barcarola. Ellen dançava ao som da nova música, agitando os braços, rasgando ojornal com os seus pés ágeis.
- Ed, pelo amor de Deus, pega nessa criança: está a rasgar o jornal todo.
Ele tocou uma última nota, que ficou suspensa no ar.
- Queridinha, não deves fazer isso. O papá ainda não acabou ler o jornal.
Ellen não se deteve. Thatcher inclinou-se sobre ela, do banco do piano, ergueu-a nos braços e sentou-a, a espernear e a rir, sobre um joelho.
- Ellen, tens de fazer sempre o que a mamã diz, e, minha querida, não deves destruir as coisas. Fazer aquele jornal custa dinheiro e houve gente que trabalhou para o fazer, e o papá comprou-o e ainda não acabou de o ler. Ellie compreende agora? Neste mundo, precisamos de construção, não de destruição. - Depois continuou a tocar a Barcarola e Ellen voltou a dançar, pousando cuidadosamente os pés entre as rosas do lado soalheiro da carpete."
DOS PASSOS, John (trad. Clarisse Tavares), "Manhattan Transfer", Lisboa, Europa-América, 1994, p.p. 22 e 23.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, janeiro 22, 2004