sexta-feira, janeiro 16, 2004
LITERATURA
"MANHATTAN TRANSFER" IV
Cap. II – metropolis
"Entorpecido com o cheiro a sabão, a loção aromática e a cabelos chamuscados, o que tornava pesado o ar abafado da barbearia, Bud estava sentado, a cabecear, com as mãos enormes vermelhas pendentes entre os joelhos. Ainda ressoava nos seu tímpanos, por entre as tesouradas, o ruído dos seus passos no caminho estéril que partia de Myack.
- O senhor que se segue!
- Que foi?... Pronto, barba e cabelo.
As mãos gorduchas do barbeiro percorreram os seus cabelo, a tesoura zumbiu como uma vespa por detrás das orelhas. Os seus olhos teimavam em fechar-se; forçou-se a abri-los, lutando contra o sono. Podia ver, para além da toalha de riscas coberta de cabelos cor de areia, a cabeça de martelo bamboleante do rapa de cor que lhe engraxava os sapatos.
- Sim, senhor - disse, na sua voz profunda e monótona, um homem que ocupava a cadeira ao seu lado - Já é altura de o Partido Democrático nomear uma pessoa forte...
-Também quer um caldo? - A cara de lua-cheia do barbeiro, com a sua pele gordurosa, inclinou-se sobre ele.
Assentiu com um gesto da cabeça.
- Champô?
- Não.
Quando o barbeiro inclinou a cabeça para trás para o barbear, sentiu vontade de encolher o pescoço, como uma tartaruga voltada de costas. A espuma espalhou-se preguiçosamente pelo seu rosto, salpicou-lhe o nariz, encheu-lhe os ouvidos. Afogava-se em colchões de espuma, espuma azul, preta, fendida pelo brilho longínquo da navalha, o brilho da sachola a revolver a terra no meio de nuvens de espuma de um negro-azulado. O velho deitado de costas no batatal, com a barba espetada, branca de espuma, coberta de sangue. As suas peúgas cobertas de sangue das bolhas nos calcanhares. Apertou as mãos geladas e duras como as mãos de um morto, por debaixo da toalha. «Deixem-me pôr-me de pé ... »
Abriu os olhos. As pontas de uns dedos aveludados acariciavam-lhe o queixo. Ergueu o olhar para o tecto, onde quatro moscas descreviam oitos em volta de um sino de papel crepe vermelho. Sentia dentro da boca, a língua seca como couro. O barbeiro endireitou novamente a cadeira. Bud olhou em volta, piscando os olhos.
- Cinquenta centavos mais um níquel para o graxa.
CONFESSA TER MATADO A MÃE INVÁLIDA.
- Importa-se que eu fique aqui um minuto a ler o jornal? - Ouviu a sua voz soar, arrastadamente, nos ouvidos que latejavam.
- À sua vontade.
OS AMIGOS DE PARKER PROTEGEM...
As letras negras retorcem-se diante dos seus olhos. Os russos..
MULTIDÃO APEDREJA...
(Despacho Especial do Herald.)
Trenton, N. J.
«Nathan Sibbetts, de 14 anos de idade, confessou finalmente à polícia, após vários dias de firme negação de culpa, ser responsável pela morte da sua idosa mãe inválida, Hannah Sibbetts, após uma discussão, na sua casa de Jacob's Creek, seis milhas a norte desta cidade. Foi preso esta noite e vai aguardar a decisão do Grande Júri,»
GUARNECER PORT ARTHUR EM FACE DO INIMIGO...
... a Srª. Rix Perde as Cinzas do Marido.
«'Na terça-feira, dia 24 de Maio, por volta das oito e meia, cheguei a casa, depois de ter passado a noite a dormir no rolo compressor, disse ele, 'e subi ao quarto para dormir um pouco mais. Tinha acabado de pegar no sono quando a minha mãe entrou no quarto e me disse que me levantasse, se não atirava-me pela escada abaixo. A minha mãe agarrou-me para me atirar pela escada abaixo. Eu atirei-a a ela primeiro e ela caiu lá em baixo. Desci e vi que a cabeça dela estava inclinada para o lado. Depois vi que ela estava morta e então endireitei-lhe o pescoço e tapei-a coma colcha da minha cama.»
Bud dobra cuidadosamente o jornal, coloca-o sobre a cadeira e sai da barbearia. Lá fora, o ar cheira a gente, está cheio de ruído e de sol. Uma agulha num palheiro...
- Eu tenho vinte e cinco anos - murmurou. - Imagine-se, um rapaz de catorze anos...
Caminha mais depressa ao longo dos passeios ruidosos, onde o sol brilha por entre as linhas do comboio aéreo, traçando na rua azul quentes faixas amarelas e ardentes. Não passava de uma agulha num palheiro."
DOS PASSOS, John (trad. Clarisse Tavares), "Manhattan Transfer", Lisboa, Europa-América, 1994, p.p. 20-22.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, janeiro 16, 2004