sábado, janeiro 10, 2004
LITERATURA
"MANHATTAN TRANSFER" I
Cap. II – metropolis
"Havia a Babilónia e Ninive: foram construídas com tijolos. Atenas tinha colunas de mármore douradas. Roma foi sustentada por grandes arcos de pedra. Em Constantinopla, os minaretes flamejam como grandes velas em redor do Corno Dourado… O aço, o vidro, o azulejo e o cimento serão os materiais dos arranha-céus. Apinhados na sua estreita ilha, os edifícios com milhões de janelas projectar-se-ao, cintilantes, pirâmide sobre pirâmide, como a branca coroa de nuvens por cima de uma tempestade.
Quando a porta do quarto se fechou atrás de si, Ed Thatcher sentiu-se muito solitário, cheio de uma aflitiva inquietação. Se ao menos Susie ali estivesse, poderia falar-lhe de todo o dinheiro que ia ganhar e de como iria depositar dez dólares por semana no Banco de poupança, para a pequena Ellen: isso daria quinhentos dólares num ano... Em dez anos, sem os juros, faria mais de cinco mil dólares. «Tenho de calcular os juros compostos sobre quinhentos e vinte dólares, a quatro por cento.» Pôs-se a percorrer, excitado, o quarto estreito. O jacto de gás ronronava confortavelmente como um gato. Os seus olhos caíram sobre o título de um Journal que jazia no chão, junto do balde do carvão, onde o deixara cair quando saíra em busca do carro de aluguer para levar Susie ao hospital.
«MORTON PROMULGA O PROJECTO DE LEI DA GRANDE NOVA IORQUE.
»CONCLUÍDO O DECRETO QUE FAZ DE NOVA IORQUE SEGUNDA METRÓPOLE DO MUNDO.»
Inspirando profundamente, dobrou o jornal e pousou-o sobre a mesa. «A segunda metrópole do mundo... E o meu pai queria que eu ficasse na sua velha e estúpida loja de Onteora. Talvez tivesse ficado se não fosse Susie... Meus senhores, nesta noite em que me concedem a grande honra de me oferecer sociedade na vossa firma, desejo apresentar-lhes a minha filha e a minha esposa.
Devo-lhe tudo.»
Ao fazer uma vénia em direcção ao guarda-fogo, as abas da sobrecasaca derrubaram uma peça de porcelana que estava sobre a consola, ao lado da estante. Ed emitiu um pequeno estalido com a língua contra os dentes, inclinando-se para a apanhar. A cabeça da holandesa de porcelana azul tinha-se separado do corpo.
«E a pobrezinha da Susie que gosta tanto dos seus bibelots. É melhor eu ir para a cama.»
Abriu a janela e olhou para fora. Ao fundo da rua passava, trovejante, um comboio aéreo. Um bafo de fumo de carvão atingiu-lhe as narinas. Deixou-se ficar à janela durante longo tempo, olhando para um lado e para o outro da rua. A segunda metrópole do mundo. Nas casas de tijolos e no candeeiro lúgubre e nas vozes dum grupo de rapazes que brincavam e discutiam nos degraus duma casa em frente, no passo firme e regular de um polícia, sentiu a marcha dos soldados, como um barco de rodas laterais a subir o Hudson por debaixo das Palisades, como uma parada eleitoral, percorrendo longas ruas em direcção a algo branco e alto, cheio de colunas e de majestade. Metropolis.
A rua encheu-se subitamente de correrias. Alguém, quase sem fôlego, gritou a palavra «Fogo».
- Onde é?
O grupo de rapazes desfez-se, saindo do alpendre para a rua. Thatcher saiu da janela. O quarto estava abafadoramente quente. Sentiu um desejo fremente de sair. Devia ir para a cama. Ao fundo da rua, já se ouvia o estrondear das ferraduras dos cavalos e o sino frenético do carro dos bombeiros. Vou só espreitar. Desceu as escadas a correr, com o chapéu na mão.
- De que lado é?
- Lá em baixo, no próximo quarteirão.
- É um prédio de habitação.
Era um prédio de seis andares e janelas estreitas. Acabava de ser fixada a escada dos bombeiros. Havia fumo e, aqui e além, saltavam rapidamente algumas faúlhas dasjanelas inferiores. Três polícias faziam girar os cassetetes, empurrando a multidão contra os degraus e as balaustradas das casas em frente. No espaço livre no meio da rua, o carro dos bombeiros e o reboque vermelho das mangueiras faziam brilhar os seus enfeites de latão. As pessoas olhavam, em silêncio, para asj anelas superiores onde se moviam sombras e brilhava uma luz ocasional. Uma fina coluna de chamas começou a elevar-se por cima da casa, como uma pistola de fogo-de-artifício.
- O saguão - sussurrou um homem ao ouvido de Thatcher.
Uma rajada de vento encheu a rua de fumo e do cheiro de trapos queimados. Thatcher sentiu-se subitamente enjoado. Quando o fumo se dissipou, viu algumas pessoas, suspensas como um cacho, a espernear, suspensas pelas mãos do peitoril de uma janela. Do outro lado, os bombeiros ajudavam algumas mulheres a descer pela escada. A chama ao centro do prédio estava mais viva. Algo negro tinha caído de uma janela e gritava sobre o passeio. Os polícias empurravam a multidão para trás, até aos extremos do quarteirão. Chegavam mais carros de bombeiros.
DOS PASSOS, John (trad. Clarisse Tavares), "Manhattan Transfer", Lisboa, Europa-América, 1994, p.p. 17-19.
posted by Luís Miguel Dias sábado, janeiro 10, 2004