terça-feira, janeiro 20, 2004
LITERATURA
Edward Steichen (American, born Luxembourg, 1879–1973), The Big White Cloud, Lake George, 1903. in www. metmuseum.org.
"- Fale-me do processo – disse Metzger, tentando endireitar o cabelo com as mãos.
- Você viu os livros de contabilidade de Inverarity e com certeza ouviu falar do caso dos filtros Beaconsfield.
Metzger fez um gesto de reserva.
- Carvão animal de ossos – lembrou Oedipa.
- Ora bem, Tony Jaguar, o meu cliente, fornecia parte desses ossos. É o que ele diz. E Inverarity nunca lhe pagou. É esse o problema.
- À primeira vista não é nada o género de Inverarity – fez notar Metger. – Ele era muito escrupuloso neste tipo de pagamentos. A não ser que se tratasse de luvas. De qualquer maneira, eu só tratava das suas reduções de impostos, e não o teria detectado. O seu cliente trabalhava para quem?
- Uma empresa de construção.
Metzger olhou em volta. Os Paranoids e as amigas talvez não tivessem ouvido.
- Ossos humanos, hem? – Di Presso acenou com a cabeça em sinal de concordância. – Sim, era assim que ele os conseguia. Há muitas auto-estradas em construção na zona, e Inverarity tinha lá interesses. Havia contratos, mas tudo perfeitamente legal, Manfred. E se houve luvas, duvido que houvesse alguma escrita.
- Mas – perguntou Oedipa – como é que construtores de estradas aparecem a negociar ossos?
- Foi preciso desventrar velhos cemitérios – explicou Metzger. – Como aconteceu com a East San Francisco Freeway, que não devia passar por ali, assim tivemos que passar pelo meio.
- Sem luvas não há auto-estradas – disse Di Presso abanando a cabeça. – Os ossos vinham de Itália. Uma venda normal. Parte deles – e apontou para o lago – serviram para decorar o fundo para os adeptos do mergulho. Era o que estava a fazer hoje, a examinar o corpo do delito. Até que Tony começou a perseguição. O resto dos ossos foi utilizado na fase I&D do programa de filtros, no princípio dos anos 50, muito antes do cancro. Tony Jaguar diz que os foi buscar ao fundo do lago di Pietà.
- Meu Deus! – exclamou Metzger quando o nome fez clique na sua cabeça. – Os ossos da GI?
- Quase o efectivo de uma companhia – referiu Manny di Presso.
O lago di Pietà fica situado perto da costa do Tirreno, algures entre Nápoles e Roma, e foi a cena de uma guerra de desgaste hoje esquecida (trágica em 1943), num foco de resistência que se formou durante a marcha sobre Roma. Durante semanas, um punhado de americanos, separados do grosso da coluna e sem comunicação, acoitaram-se na margem estreita do lago tranquilo e claro, enquanto do alto da falésia, que caía vertiginosamente sobre a praia, os alemães os mantinham debaixo de fogo, noite e dia. A água do lago era demasiado fria para que se pudesse alcançar a outra margem. Não havia árvores para construir jangadas. Aviões não passavam, excepto um ou outro Stuka com mira de metralhar. É extraordinário como tão poucos homens conseguiram resistir tanto tempo. Escavaram a costa rochosa até onde puderam; enviaram patrulhas ao cimo da falésia, que na maioria nunca voltaram, conseguiram uma vez apoderar-se de uma metrelhadora. Procuravam caminhos para escapar, mas os poucos que regressaram vivos nada tinham encontrado. Fizeram tudo para fugir; não conseguindo, agarraram-se à vida como puderam. Mas morreram todos, silenciosamente, sem rasto ou palavra. Um dia, os alemães desceram da falésia, e os soldados deitaram à água os corpos que encontraram na praia, as armas e o que restava do material, e que já não servia a nenhum dos lados. Os corpos afundaram-se; permaneceram lá até ao princípio dos anos 50 altura em que Tony Jaguar, que fora cabo numa unidade italiana ligada às tropas alemãs no lago di Pietà e sabia o que havia no fundo, decidiu com alguns colegas ir ver o que se podia recuperar. Tudo o que conseguiram salvar foram ossos."
Pynchon, Thomas (trad. Manuela Garcia Marques), "O Leilão do Lote 49", Lisboa, Fragmentos, 1987, p.p. 46-48.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, janeiro 20, 2004