quarta-feira, janeiro 07, 2004
LITERATURA
"Cosmópolis"
"Tinha sido morto ao vivo no Canal Dinheiro & Negócios. Passava da meia-noite em Pyongyang e ele estava a responder às derradeiras perguntas de uma jornalista, por cortesia para com os telespectadores norte-americanos, depois de um dia e um serão históricos de cerimónias, recepções, jantares, discursos e brindes.
Eric vui-o assinar um documento num ecrã e preparar-se para morrer noutro.
Um homem de camisa de manga curta entrou no enquadramento da câmara e começou a apunhalar Arthur Rapp na cara e no pescoço. Arthur Rapp agarrou-se ao homem e pareceu puxá-lo para si, como que partilhar uma confidência. Caíram ambos no chão aos rebolões, enredados no cabo do microforme da entrevistadora. Ela foi arrastada com eles na queda, uma mulher esbelta cuja saia tinha uma racha que lhe subia pela coxa acima se tornar o ponto fulcral de observação.
Soavam buzinas na rua.
Um dos ecrãs exibu um grande plano. Era o rosto carnudo de Arthur Rapp a dilatar-se em espasmos de comoção e dor. Lembrava uma amálgama de matéria vegetal comprimida. Eric queria que mostrassem outra vez aquela sequência. Mostrem outra vez. Mostraram, é claro, e ele sabia que iriam fazê-lo repetidamente até altas horas da noite, a nossa noite, até as imagens já não despertarem qualquer sensação ou até todos os habitantes do mundo as terem visto, dependendo de qual das duas coisas acontecesse primeiro, mas ele podia vê-las de novo se desejasse, em qualquer altura, graças ao sistema de busca automática, uma tecnologia que lhe parecia opressivamente vagarosa, ou podia recuperar uma sequência em câmara lenta da mulher esbelta e do seu microfone a serem sugados pelo remoinho do terror e podia ficar ali sentado horas e horas, cheio de vontade de fodê-la naquela precso instante, no turbilhão sangrento onde se mesclavam a faca, membros a esmo e carótidas retalhadas, no meio dos gritos em staccato do assassino a desferir golpes e mais golpes, com um telemóvel preso ao cinto, e dos gemidos gasosos e túmidos do moribundo Arthur Rapp."
DeLILLO, Don (trad. Paulo Faria), "Cosmópolis", Lisboa, Relógio d`Água Editores, 2003, p.p.46 e 47.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, janeiro 07, 2004