sexta-feira, janeiro 09, 2004
LITERATURA
"Cosmópolis"
"Autocarros estrondeavam pela avenida acima aos pares, a tossir, arquejantes, autocarros lado a lado ou em fila indiana, afugentando pessoas para os passeios em corridas velozes, presas vivas, nada de novo, e era aí que os operários de construção civil almoçavam, sentados contra as paredes dos bancos, de pernas estendidas, botas esmurradas, olhares perscrutadores, habituados àquele fluxo de gente, àquele desfile de tropas em parada, examinando a aparência, o ritmo da marcha, o estilo, mulheres de saias elegantes, em passo muito rápido, mulheres de sandálias com auscultadores e microfone acoplado, mulheres de calções largos, turistas, outras altivas e vistosas com unhas de filme de vampiros, compridas, afiadas como colmilhos, autênticos frescos em miniatura, e os operários estavam atentos a todos os géneros de extravagãncia, pessoas cujos cabelos ou roupas ou maneira de andar ridicularizavam o trabalho que eles executavam, quarenta andares mais acima, ou paspalhões de telemóvel, que os irritavam sem excepção.
Eis um espectáculo que normalmente o entusiasmava, o grande caudal voraz, em que a vontade física da cidade, as exaltações do ego, as exigências da indústria, do comércio e das multidões moldam cada momento anedótico.
Ouviu a sua própria voz que falava a uma certa distância.
- A noite passada não dormi – disse."
DeLILLO, Don (trad. Paulo Faria), "Cosmópolis", Lisboa, Relógio d`Água Editores, 2003, p.p.53 e 54.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, janeiro 09, 2004