quinta-feira, janeiro 29, 2004
LITERATURA – "The Catcher in the Rye"
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Lotte Jacobi/ UP Newspictures
Salinger in 1953
"- Reprovei-te em História porque tu nada sabias.
- Eu sei. Era infalível.
- Nada sabias. Absolutamente nada – repetiu. Uma coisa que me enlouquece é as pessoas dizerem as coisas duas vezes, depois de já termos concordado logo à primeira. E ele disse aquilo três vezes. – Mas absolutamente nada. Até duvido de que tenhas aberto o livro. Foi ou não foi?
Diz lá a verdade, rapaz!
- Bem! Eu olhei para ele algumas vezes – respondi. Não queria ofendê-lo. Era louco por História.
- Olhaste, hem? – disse, muito sarcástico. – A tua prova está ali, sobre o armário. Em cima dos livros. Trá-la cá. (…)
Começou a mirar e a remirar a prova.
- Estudamos os Egípcios desde o dia 4 de Novembro até 2 de Dezembro – disse ele. – Escolheste os Egípcios para tema de desenvolvimento. Queres ouvir o que escreveste?
- Não, senhor. Não tenho grande interesse – respondi. Mas ele leu a composição. É impossível deter um professor quando está disposto a fazer qualquer coisa. Acabam sempre por fazer o que pensam.
Os egípcios pertenciam a uma velha raça caucasiana fixada na zona norte de África. A última, como sabemos, é o maior continente do hemisfério ocidental.
E eu ali sentado, a ter de ouvir aquela estupidez! Era uma armadilha indecente.
Os Egípcios são extraordinariamente interessantes por vários motivos. A ciência moderna ainda não descobriu os ingredientes secretos que os Egípcios usavam para preservar os seus mortos durante séculos e séculos. Este mistério é um desafio à ciência moderna do século XX.
Interrompeu a leitura e olhou para mim. Eu começava a odiá-lo.
- A tua composição, chamemos-lhe assim, termina aqui – disse, num tom muito sarcástico. Quem diria que um velho daqueles poderia ser tão sarcástico? – Contudo, escreveste ainda uma nota pessoal no fundo da página – acrescentou.
- Bem sei – disse eu rapidamente, para evitar que ele lesse aquilo em voz alta. Mas era impossível deteê-lo. Estava rubro.
Meu caro Mr. Spencer – leu em voz alta. – Isto é tudo o que eu sei sobre os Egípcios. Não estou muito interessado no assunto, embora as suas lições fossem muito interessantes. Não me importo de que me reprove, pois já estou reprovado em tudo, excepto em Inglês. Respeitosamente, Holden Caulfield.
Depois contemplou-me como se acabasse de me vencer ao pinguepongue ou coisa semelhante. Parece-me que nunca o esquecerei só por me ter lido aquilo em voz alta. Eu nunca o teria feito se fosse ele quem tivesse escrito aquela nota. Escrevi, aliás, aquelas malditas linhas só para que ele não sentisse remorsos em reprovar-me.
- E achas que eu fui injusto, rapaz?
- Não, senhor! Nem pensar nisso é bom! – respondi. Quem me dera que ele deixasse de me deixar «rapaz» de uma vez para sempre. (…)
Bem! Via-se que ele estava contristado. Por isso, consolei-o. Disse-lhe que eu não passava de um idiota, e tudo o mais. Disse-lhe que teria feito exactamente a mesma coisa e que as pessoas, geralmente, não compreendem como é difícil ser-se professor. Este género de coisas. A velha treta.
Mas o mais curioso é que, enquanto eu lhe impigia estas balelas, ia pensando em assuntos muito diferentes. Vivo em Nova Iorque e, por isso, pensava na lagoa do lado sul do Central Park. Tentava imaginar se ela já estaria gelada quando voltasse a casa e, se estivesse, para onde teriam ido os patos. Para onde irão os patos quando a lagoa gela? Levá-los-ão num carro para algum jardim zoológico? Ou, muito simplesmente, voarão para outras bandas?"
SALINGER, J.D. (trad. João Palma Ferreira), "Uma Agulha no Palheiro", Lisboa, Livros do Brasil, 2000, p.p. 19 - 22.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, janeiro 29, 2004