terça-feira, dezembro 30, 2003
Sentado debaixo do grande terebinto XXIV
“Rubro, abrasado e intumescido – disse ele com voz trémula – está o meu rosto de tanto chorar. Profundamente aflito aqui estou chorando e as lágrimas rolam-me sobre a face sem cessar.
Estas palavras não eram suas, percebia-se logo. A acreditar em antigos cânticos, já Noé as proferira, iguais ou parecidas, quando do Dilúvio. Jacob fê-las suas. Já é bom e consoladoramente cómodo que tenham chegado à humanidade sofredora, vindas de tempos remotos, expressões plangentes que se adaptam também ao tempo actual e parecem feitas de propósito para ele, satisfazendo a vida dolorosa, se é que simples palavras podem satisfazer, e que possamos servir-nos delas para unir a nossa mágoa à antiga mágoa que ainda perdura. Na verdade, Jacob não podia prestar maior honra à sua afeição do que compará-la ao Dilúvio e empregar as palavras motivadas pelo cataclismo.
Em todo o caso, o seu desespero, nas suas lamentações, já empregava antes muitas frases feitas ou meias feitas. Especialmente a que tantas vezes repetia suspirando: «Uma fera cruel devorou José! Despedaçado, despedaçado foi José!», tinha um cunho característico, embora se não deva crer que isto possa diminuir o que há de impressionante em tais prantos. Ah! Nada faltava para os tornar impressionantes, embora tivessem o cunho de outras eras.
- O cordeiro e a ovelha mãe foram trucidados! – repetia Jacob em ladainha, balouçando de um lado para o outro e chorando amargamente. – Primeiro a mãe, depois o cordeiro! A ovelha-mãe desamparou o cordeiro quando só faltava mais um pouco de caminho até ao abrigo. Agora também o cordeiro se tresmalhou e perdeu! Não, não, não! É de mais, é de mais! Ai de mim, ai de mim! Pelo filho dilecto se ergue o meu lamento. Pelo rebento cujas raízes foram arrancadas, pela minha esperança que foi extirpada como uma vergôntea! O meu Damu, o meu filho! A sua morada é o mundo inferior! Não comerei mais pão, não beberei mais água. Despedaçado, despedaçado está José…”
Thomas Mann, “O jovem José”, Livros do Brasil.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, dezembro 30, 2003