domingo, dezembro 07, 2003
para a janela-indiscreta
Egyptian Art - Cat, 330–30 B.C.E.; Ptolemaic period
A cidade dos gatos
"Havia aqui um cheiro tão forte de erva-gato, que o estrangeiro não habituado quase se sentia mal. É um cheiro repugnante para qualquer criatura, mas não para o animal sagrado em Bastet, isto é, para o gato que, como é sabido, o prefere a qualquer outro cheiro. No santuário de Bastet, o principal e grandioso edifício da cidade, conservam-se numerosos exemplares deste animal, pretos, brancos, de várias cores, que, com a graça flexível e silenciosa da sua espécie, deslizavam sobre os muros e pátios por entre os devotos, e estes lhes faziam festas com a repelente planta. Mas como em todas as casas da cidade o gato era animal de luxo, o cheiro de valeriana misturava-se a tudo, temperava as comidas, impregnava por muito tempo as peças de roupa, de forma que os viajantes que vinham dessa cidade eram reconhecidos ainda em On e Mempi, tanto que o povo lhes dizia, rindo: «Evidentemente, vindes de Per-Bastet!»
Aliás, aquele riso não era provocado só pelo cheiro, mas pela própria cidade dos gatos e pelas ideias alegres a ela associadas. Com efeito, Per-bastet, ao contrário de Per-Sopd, que aquela superava muito em tamanho e população, era uma cidade de alegre fama e consideração, embora estivesse tão profundamente encravada no antigo delta. Era precisamente uma alegria antiga, primitiva e um tanto grosseira, e só de pensar nela todo o Egipto ria. Tinha essa cidade o que não tinha a Casa de Sopd, a saber, uma festa famosa em todo o país, à qual acorriam, como bazofiavam os habitantes, «milhões» de pessoas. Com isto queriam dizer algumas dezenas de milhares de pessoas que, por via marítima ou terrestre, desciam até ela com a corrente, já antecipadamente alegres, máxime as mulheres que, munidas de cegarregas, se comportavam, ao que se dizia, de uma maneira bastante gaiata, pois da coberta das embarcações iam fazendo gestos grosseiros e dirigindo palavras às localidades por onde passavam. Os homens também se mostravam muito satisfeitos, assobiavam, cantavam, tagarelavam; e todos quantos iam dar à cidade tomavam parte em grandes e concorridas reuniões, acampando em tendas e entregando-se a pândegas durante três dias, com sacrifícios, bailes e mascaradas, ao surdo rufar de tambores, contando historietas , assistindo a habilidades de pelotiqueiros e de encantadores de serpentes, e bebendo mais vinho do que era consumido em Per-Bastet no resto do ano. Dizem que com isto a multidão ficava num estado de ânimo verdadeiramente primitivo: de vez em quando flagelavam-se, ou antes, golpeavam-se dolorosamente com paus espinhosos, no meio de um alarido generalizado, inseparável da antiga festa de Bastet em que ninguém podia passar sem rir, porque aqueles sons estrídulos faziam lembrar o miado da gata quando recebe a visita nocturna do gato.”
MANN, Thomas (trad. Agenor Soares de Moura), “José no Egipto”, Lisboa, Edição «Livros do Brasil», Lisboa, s.d., p.p. 68-69.
posted by Luís Miguel Dias domingo, dezembro 07, 2003