quarta-feira, dezembro 17, 2003
Na Montanha VIII
“Uma tarde, resolveram levar Karen Karstedt ao cinema «Bioscope», porque ela apreciava imenso tudo aquilo. No ar viciado que os incomodava aos três fisicamente, acostumados como estavam a uma atmosfera puríssima, pesava-lhes o peito e nublava-lhes a cabeça. Nesse ar que pesava no peito deles e produzia uma bruma confusa na cabeça, uma vida múltipla sucedia-se na tela diante dos seus olhos doloridos, uma vida apresentada em pedacinhos, divertida e apressada, cheia de uma inquietação saltitante, nervosa e rápida, numa agitação fermente que só se demora, vibrando, para logo tornar a partir, acompanhada por uma mùsicazinha que aplicava a sua presente divisão do tempo à fuga de aparências passadas, e que, apesar da limitação dos seus recursos, sabia lançar mão de todos os registos da solenidade, da pompa, da paixão, da barbárie e de uma sensualidade lânguida. Era uma história movimentada de amor e de crime, que viram desenrolar-se, silenciosamente, na corte de um déspota oriental: acontecimentos precipitados cheios de magnificiência e de nudez, cheios de desejos do soberno e da fúria religiosa dos servos, transbordante de crueldade, de volúpia, de volúpia assassina e de uma lentidão evocadora, quando se tratava por exemplo de fazer apreciar a musculutura dos braços de um verdugo, numa palavra, inspirados por um conhecimento familiar dos desejos secretos da civilização internacional que assistia a este espectáculo. Settembrini, como homem de juízo, condenaria, provavelmente da forma mais severa, este espectáculo tão pouco humanístico, com a sua ironia mordaz e clássica não teria deixado de fustigar o abuso que se fizera da técnica com o fim de animar imagens que rebaixavam a dignidade do homem: era no que pensava Hans Castorp, e segredou ao primo algumas observações a este respeito. A sr.ª Stohr, porém, que também estava no cinema, não longe dos três, parecia extasiada, e o seu estólido rosto vermelho estava convulsionado pelo prazer.
O mesmo aspecto ofereciam, deresto, as fisionomias dos demais espectadores. Quando a derradeira e trémula imagem de uma sequência de cenas de desvanecia e se fazia luz na sala, e o campo das visões aparecia á multidão aparecia à multidão como uma tela vazia, nem podia haver aplausos. Não estava presente ninguém que se pudesse recompensar com exclamções, graças à arte de que dera provas.”
Thomas Mann, “A Montanha Mágica”.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, dezembro 17, 2003