terça-feira, dezembro 09, 2003
“Carta a um Refém”
Charles Ray (American, born 1953), Untitled, 1973, printed 1989.
“Essa qualidade da alegria não é o fruto mais precioso da civilização que é a nossa? Uma tirania totalitária poderia satisfazer-nos, igualmente, nas nossas necessidades materiais. Mas nós não somos gado na engorda. A prosperidade e o conforto não poderiam bastar para nos encher de satisfação. Para nós, que fomos educados no culto do respeito pelo homem, têm muito peso os simples encontros, que se transformam, por vezes, em festas maravilhosas…
Respeito pelo homem! Respeito pelo homem!... Aí está a pedra-de-toque! Quando o nazi respeita exclusivamente quem se parece com ele, respeita-se a si próprio. Recusa as contradições criadoras, arruína toda a esperança de ascensão e cria, para mil anos, em lugar de um homem, o autómato de uma termideira. A ordem pela ordem priva o homem do seu poder essencial, que é tanto o de transformar o mundo como a si próprio. A vida cria a ordem, mas a ordem não cria a vida.
Parece-nos, quanto a nós, muito pelo contrário, que a nossa ascensão não está terminada, que a verdade de amanhã se nutre do erro de ontem e que as contradições a superar são o próprio húmus do nosso crescimento. Reconhecemos como nossos mesmo aqueles que diferem de nós. Mas que estranho parentesco. Baseia-se no futuro, não no passado. No termo, não na origem. Somos, uns para os outros, peregrinos que, percorrendo caminhos diversos, caminhamos penosamente para o mesmo ponto de encontro.
Ma acontece que, hoje, o respeito pelo homem, condição da nossa ascensão, está em perigo. As rupturas do mundo moderno conduziram-nos às trevas. Os problemas são incoerentes, as soluções contraditórias. A verdade de ontem morreu, a de amanhã ainda está por edificar. Nenhuma síntese válida se vislumbra,e cada um de nós só detém uma parcela da verdade. À falta de uma evidência que as imponha, as religiões políticas recorrem à violência. E sucede que, à força de nos dividirmos quanto aos métodos, nos arriscamos a já não reconhecer que nos apressamos em direcção ao mesmo fim.
O viajante que transpõe a montanha, seguindo a direcção de uma estrela, se se deixa absorver em demasia pelos problemas da sua escalada, arrisca-se a esquecer qual a estrela que o guia. Se só age por agir, não irá a parte nenhuma. (…)
Respeito pelo Homem! Respeito pelo Homem!... Se o respeito pelo homem estiver firmado no coração dos homens, os homens acabarão mesmo por instituir, como consequência, o sistema social, político ou económico que consagrará esse respeito. Uma civilização fundamenta-se, em primeiro lugar, na substância. Ela é no homem, antes de mais, desejo cego de um certo calor. O homem, em seguida, de erro em erro, encontra o caminho que conduz ao fogo.”
A.De Saint-exupéry, Carta a um Refém (versão de Francisco G. Ofir), s.l., Grifo Editores e Livreiros, Lda., 1995, p.p. 49-54.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, dezembro 09, 2003