segunda-feira, novembro 10, 2003
LITERATURA
“ Há uma certa classe de mulheres que naturalmente se sente atraída por homens velhos – disse-me. Como já assinalei, ele gostava dos comportamentos fora de regra. Especialmente quando o amor era motivo. Ele atribuía um grande valor ao desejo. Quando buscávamos o amor, quando nos apaixonávamos, estávamos em busca da outra metade que tínhamos perdido, como tinha dito Aristófanes, mas também Platão num discurso atribuído a Aristófanes. No início, homens e mulheres eram redondos como o sol e a lua, eram ambos macho e fêmea e tinham dois órgãos genitais. Em alguns casos ambos os órgãos eram machos. E o mito continuava. Estes eram seres auto-suficientes e orgulhosos. Desafiaram os deuses do Olimpo, que os puniram cortando-os ao meio. Foi esta mutilação que a humanidade sofreu. De modo que, geração após geração, buscamos a outra metade, ansiando ser de novo inteiros.
Eu não era um erudito. Tal como muitos, ou a maioria, dos estudantes da minha geração, li O Banquete de Platão. Achei-o muito divertido. Mas fui levado por Ravelstein a relê-lo. Não propriamente levado. Mas se estivéssemos continuamente na sua companhia éramos repetidamente remetidos para O Banquete. Ser-se humano era ser-se mutilado, amputado. O homem é incompleto. Zeus é um tirano. O Monte Olimpo é uma tirania. O trabalho da humanidade no seu estado amputado é procurar a metade que falta. E, após tantas gerações, a nossa verdadeira metade simplesmente não é encontrada. Eros é uma compensação outorgada por Zeus – provavelmente por motivos políticos próprios. E a busca pela nossa outra metade é em vão. O encontro sexual permite um temporário esquecimento de nós próprios, mas a dolorosa consciência da nossa mutilação é permanente.”
BELLOW, Saul (trad. Rui Zink), “Ravelstein”, Lisboa, Editorial Teorema, 2000, p.p. 28 e 29.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, novembro 10, 2003