sábado, novembro 08, 2003
LITERATURA
“A admiração dos adolescentes negros ajudava Ravelstein a lidar com o ódio dos seus colegas, dos professores. O sucesso popular do seu livro enfurecera os académicos. Ele expusera as falhas do sistema do qual faziam parte, o vazio do seu historicismo, a sua permeabilidade ao niilismo europeu. Um resumo da tese era que, enquanto se conseguia obter nos E.U.A. uma excelente preparação técnica, a educação humanística tinha sido reduzida ao ponto de praticamente se desvanecer. Estávamos ao serviço da alta tecnologia, que transformara o mundo moderno. A geração mais velha poupava para possibilitar aos filhos o acesso à educação. O custo de uma licenciatura chegava aos cento e cinquenta mil dólares. Os pais bem podiam ter deitado esse dinheiro pela sanita, acreditava. Não era possível obter uma verdadeira educação nas universidades americanas, excepto para engenheiros aeronáuticos, técnicos de informática, e coisas do género. As universidades eram excelentes em biologia e nas ciências físicas, mas em humanidades eram um fiasco. O filósofo Sidney Hook dissera a Ravelstein que a filosofia estava acabada.
- Temos de arranjar emprego para os nossos licenciados como consultores de ética nos hospitais – admitira Hook.
O livro de Ravelstein não era de todo disparatado. Tivesse ele sido um provocador balofo e seria fácil não lhe ligar. Mas não, ele era sensato e bem informado, os seus argumentos estavam solidamente documentados. Todos os cretinos emproados se uniram contra ele (como Swift ou talvez Pope disseram há muito tempo). Se tivessem os poderes do FBI, os professores teriam colocado Ravelstein nos cartazes dos “mais procurados”, como havia nos edifícios públicos. (…)
Quando os colegas ultrajados por Ravelstein o atacaram, ele disse que se sentiu como aquele general americano cercado pelos nazis – teria sido Remagen? Quando lhe ordenaram que se rendesse, a sua resposta fora “Vão bardamerda! (…)
O livro fora bem recebido na Europa. Os ingleses estavam tentados a olhá-lo de cima. As universidades encontraram erros, algumas delas, no seu grego. Mas quando Margaret Thatcher o convidou para um fim de semana em Chequers, ele ficou “aux anges” (Chequers era divino: o Abe preferia as expressões francesas às americanas; ele não dizia “um mulherengo” mas “un homme à femmes”). Até mesmo gente de esquerda – mas inteligente – estava do lado dele.
Em Chequers, a senhora Thatcher chamou-lhe a atenção para um quadro de Ticiano: um leão a rugir preso numa rede. Um rato estava a roer as cordas para libertar o leão. (Seria uma das fábulas de Esopo?) Este pormenor tinha ficado perdido durante séculos, na sombra e sob a poeira acumulada. Um dos grandes homens do século, o estadista Winston Churchill, tinha, com os seus próprios pincéis, restaurado o mítico rato.”
BELLOW, Saul (trad. Rui Zink), “Ravelstein”, Lisboa, Editorial Teorema, 2000, p.p. 51-53.
posted by Luís Miguel Dias sábado, novembro 08, 2003