A montanha mágica

sexta-feira, novembro 21, 2003

Lauren Hartke 1




"Deixou de ouvir os boletins meteorológicos. Aceitava as flutuações do clima sem grandes interrogações, a chuva gélida e os dias ventosos e os grandes penedos corcundas nos campos inclinados, como insígnias de clãs, a pulsarem com os relâmpagos e as histórias e o tempo. Cortava lenha. Passava horas diante do ecrã do computador a olhar para as imagens em tempo real de uma câmara de vídeo montada na berma de uma estrada de duas faixas, junto de uma cidade finlandesa. A noite ia a meio em Kotka, na Finlândia, e ela contemplava o ecrã. Aquilo interessava-lhe porque estava a acontecer naquele preciso instante, enquanto ela se encontrava ali sentada, e porque acontecia vinte e quatro horas por dia, imagens anónimas de carros a entrarem e a saírem de Kotka ou somente a estrada vazia nos momentos mortos. Os momentos mortos eram os melhores.
Ficava sentada, a olhar para o ecrã. Era irresistível, suficientemente real para não ser afectado pela circunstância de nada acontecer. Era precisamente essa circunstância que dava força às imagens. Eram três da manhã em Kotka e ela esperava que um carro surgisse ? não que se interrogasse sobre quem ia lá dentro. Era apenas um facto passado em Kotka. Era a sensação de organização, um lugar contido numa moldura inalterável, tal como é e tal como nós o vemos, com a indicação da hora local num mostrador digital, num dos cantos do ecrã. Kotka era um outro mundo, mas ela podia vê-lo em toda a sua realidade, nas suas horas, minutos e segundos.
Por vezes, imaginava que havia pessoas que se masturbavam a olhar para aquilo, a aparição de um carro na estrada para Kotka, a meio da noite. Dava-lhe vontade de rir. Cortava lenha. Todos os dias, guardava algum tempo para a webcam de Kotka. Não sabia qual o significado daquele fluxo de imagens, mas aceitava-o como um acto de poesia à deriva. Preferia os momentos mortos. Esvaziavam-lhe o espírito e faziam-na sentir o silêncio profundo de outros lugares, o mistério de alcançar com a vista um recanto do outro lado do mundo, despojado de tudo à excepção de uma estrada que se aproxima e se perde na distância, ambas as realidades simultâneas, e os números a mudarem no mostrador digital com uma urgência bizarra e oca, os segundos a avançarem ao encontro do minuto, os minutos a treparem ao encontro da hora, e ele ficava sentada a ver, à espera que o vulto fugaz de um carro assomasse no asfalto."

DeLILLO, Don (trad. Paulo Faria), "O Corpo Enquanto Arte", Lisboa, Relógio D`Água Editores, 2001, p.p. 38 e39.

posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, novembro 21, 2003

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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