domingo, novembro 16, 2003
"apanhar uma doença"
"Há lágrimas na natureza das coisas e a certeza do efémero toca-nos o coração.
Vergílio
Não sei se ela disse
- Esta era a casa
ou
(se calhar)
- Há vinte anos nós
ou
(pode ser, não estou certo)
- Morei aqui
ou então não disse nada, limitou-se a subir da Muxima ao meu lado, talvez um pouco à minha frente
(um pouco à minha frente)
fosse com uma varinha, fosse com um pedaço de cana na mão, quase sem olhar para mim
(disso lembro-me)
como se passeássemos ainda que qualquer coisa nos seus gestos, na sua cara
(uma inquietação, uma expectativa, uma zanga)
afiançasse que não passeávamos nem meia através dos quarteirões que a guerra destruíra
(e o mar à nossa esquerda, o mar lá em baixo sempre à nossa esquerda)
ela portanto à minha frente, devagar primeiro, atenta às cicatrizes dos canhões sem recuo nas esquinas, ao abandono dos quintais, à piscina vazia em que os dentes de um soldado morto continuavam a crescer, ela devagar primeiro, quase a correr depois, esquecida de mim, largando a varinha ou o pedaço de cana, a correr não como correm as brancas, como correm as pretas no meio das quais criaram
(vide relatório anexo)"
ANTUNES, António Lobo, "Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo", Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003, p.p. 19 e 20.
num caderno...
"Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para ser lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma
parece-me
de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn Borg, comparando-o com outros tenistas, que estes jogavam ténis enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que por comodidade chamei romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. A pessoa tem de renunciar à sua própria chave
aquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a alheia
e utilizar a chave que o texto lhe oferece."
no Público...
R.- Começaram a aparecer os diamantes, as pessoas... Cada vez mais me parece que um livro é um organismo vivo, faz o que quer. E temos que ir atrás do livro, fazer aquilo que o livro exige. É um organismo independente.
Como é que hei-de explicar o processo?... Escrevo estas horas todas porque as duas primeiras horas normalmente são perdidas. Aquilo que tento encontrar dentro de mim é um estado semelhante ao dos sonhos, mas para isso tenho de estar fatigado. Sempre que não estou cansado a minha auto-censura obriga-me a escrever prosa de escriturário, sujeito, predicado, complemento... À terceira ou quarta hora aquilo começa a ficar livre e a mão anda sozinha. (...)
R.- Há um livro muito curioso, feito por um francês, de entrevistas com escritores, muitos americanos, também franceses. Então com o John dos Passos é: como é que escreveu o "USA"? De onde é que lhe vêm as coisas? E o John dos Passos: "Bom, uma pessoa vai pela rua..." E não disse mais nada. Por exemplo, a entrevista com o Hemingway é extremamente decepcionante. Percebe-se que ele está a tentar fazer um esforço honesto para explicar e que não é capaz de dizer mais do que aquilo. A impressão que dá é que toda a sua organização mental foi trabalhada no sentido de escrever.
Quando estava a escrever este livro [o que está ainda em manuscrito] aconteceu-me uma coisa que nunca me tinha acontecido. Estava a escrever e dei-me conta de que estava a chorar... eu que sou uma pessoa que não choro... a escrever e a chorar... com as lágrimas a correrem-me pela cara abaixo. E não era tristeza, era uma tal felicidade como nunca tive outro momento assim, muito mais feliz, muito mais completo do que um orgasmo, do que qualquer outra coisa. Uma felicidade inimaginável - infelizmente durou só um dia... Porque era exactamente aquilo. Há momentos em que se está a escrever e se percebe: é isto. A sensação de que a palavra é certa dá um imenso prazer. Quando as pessoas dizem: o livro é triste, o livro é não sei o quê... A mim, o que me dá prazer enquanto leitor é a felicidade da expressão. É difícil de explicar, porque são coisas anteriores às palavras, e cada vez mais, felizmente, os livros vêm dessa zona, a que não temos acesso. A estrutura dos livros... depois vejo que é muito elaborada, mas não é conscientemente elaborada... (...)
P.- Num caderno agora feito pela Dom Quixote, a propósito dos 20 anos de António Lobo Antunes nesta editora, vem a reprodução de uma crónica sua em que diz: "O livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos"...
R.- Estou mais reconciliado com as crónicas. Desprezava-as muito e agora, ultimamente, têm-me servido como uma espécie de coisa paralela aos romances. Quase um diário, paralelo. (...)
São precisas três coisas para escrever: paciência, solidão e orgulho. Isso é que faz com que escreva e reescreva e reescreva e reescreva... (...)
P.- Livros de puta...?
R.- O Zé [Cardoso Pires] quando saiu um romance qualquer, não sei qual, disse: "Este é um livro de puta." Não gosto dos livros que vêm tentar seduzir-me, que me piscam o olho, que me convidam para dormir com eles... não sei se estou a ser claro. Estou a falar enquanto leitor. Portugal não é um país pequeno? Quantos escritores finlandeses bons há? Se houver quatro ou cinco escritores vivos a escrever bons romances... não há mais.
posted by Luís Miguel Dias domingo, novembro 16, 2003