sexta-feira, outubro 24, 2003
“O Homem Português” 3
O Português: o povo e as «élites»
“Desde Alcácer Quibir faltam o que na tropa se chama quadros – faltam élites. A massa é a mesma: do Vouga para cima, uma gente que conserva quase todas as qualidades de fidelidade, de resignação, de sobriedade; do Vouga para baixo, os mesmos homens, mais ou menos pintados de branco. É a linha divisória, onde tudo muda – costumes, tradições, festas. Extraordinário pequeno povo, com o qual foi possível fazer-se história admirável! Passou fome, dizimaram-no as pestes. A anos estéreis sucediam-se anos estéreis. Trabalhos forçados. E do passado não nos chega uma queixa. «A distinção notada pelos estrangeiros – diz Teófilo Braga -, entre a população portuguesa do Norte e do Sul, explica-se pelo facto de sobre esse fundo ibérico se cruzar no Norte o elemento árido, ao passo que no Sul estacionou o elemento semita.» - O antagonismo entre Lisboa e Porto explica-se também por uma questão de raça. Ao passo que o semita, no Sul, queimava gente aos molhares, nunca foi possível fazer no Porto um auto-de-fé. Dava a minha vida para fazer a história deste povo e para demonstrar a importância do trabalho dessas massas obscuras colaborando na evolução das formas sociais, que às vezes me aparecem em todo a sua nudez. Pobre desgraçado país, que sem dinheiro e com uma população diminuta, depois de correr mundo, colonizou o Brasil, coloniza a África e faz todos os dias esforços inconscientes e extraordinários para encontrar um caminho. Foi sempre o que é hoje, capaz de todos os sacrifícios, com tanto que haja quem o dirija e se sinta enquadrado. Galegos e mouros, berberes e pretos, tudo marcha, desde que apareça quem marche á sua frente. No Brasil, o seu trabalho é extraordinário: - ainda hoje a gente fica surpresa com o português do Rio Grande, cheio de nobreza, a que Garibaldi se refere nas Memórias. E na América? Não é um americano, Jack London, quem afirma que o português (o açoriano) vale mais e melhor que o americano, a quem conquista, passa a passo, o solo da Califórnia?
Porque não dá resultado o esforço de Pombal? Porque é o nosso soldado péssimo ou óptimo, conforme os chefes? Não se bate e desorganiza tudo – mas vem Beresford e os oficiais ingleses e passa logo a ser, segundo Napoleão, dos melhores soldados do mundo. Portugal é uma pátria porque, para ter uma pátria, o essencial é merecê-la, e nós temo-la merecido, mais e melhor, do que muitos dos grandes países desse mundo.
O que é preciso é criar quanto antes novas élites. Diga-se tudo: as nossas últimas convulsões são uma luta inconsciente de sangue que procura um ideal e não o encontra. A maior tragédia passa-se na obscuridade e no silêncio, entre fantasmas que se querem impor, para viverem outra vez… Para os vencer e dominar, caminhando, não para o ideal antigo mas, ao menos, para a mercearia bem ordenada, de que falava Junqueiro, é necessário criar rapidamente novas élites. Não élites que nos subjuguem – mas élites que nos conduzam para a beleza e para a justiça…”
Raul Brandão
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, outubro 24, 2003