domingo, outubro 19, 2003
“O Espelho”, de Andrei Tarkovski, na Janela Indiscreta II
“A imaginação é menos rica que a vida. E, hoje em dia, sinto com intensidade cada vez maior que idéias e estados de espírito não devem ser determinados antecipadamente. É preciso saber abandonar-se à atmosfera da ecna e lidar com o set com a mente aberta. Já houve época em que eu não conseguia começar a filmar antes de ter elaborado um projecto completo do episódio; agora, porém, vejo tal procedimento como uma coisa abstrata, que cerceia a imaginação. Talvez fosse o caso de parar de pensar nisso por algum tempo.
Lembremo-nos de Proust: [“No caminho de Swann, pp. 155-157, Editora Globo, tradução de Mário Quintana”]
“Tão afastadas se encontravam as torres e tão pouco me parecia aproximar-nos delas, que fiquei atônito quando paramos, instantes depois, diante da igreja de Martinville. Ignorava o motivo do prazer que tivera ao avistá-las no horizonte, e a obrigação de procurar desvendá-lo me parecia muito penosa; tinha vontade de guardar de reserva na cabeça aquelas linhas que se moviam ao sol e não mais pensar nelas por enquanto. …
“Sem confessar-me que aquilo que estava oculto atrás das torres de Martinville devia ser algo assim como uma bela frase, pois que aparecera sob a forma de palavras que me causavam prazer, pedi lápis e papel ao doutor e, para aliviar a consciência e obedecer ao meu entusiasmo, compus, apesar dos solavancos do carro, o pequeno trecho seguinte. …
“Jamais tornei a pensar em tal página, mas naquele instante, ao terminar de escrevê-la, na ponta do assento onde o cocheiro do doutor costumava colocar um cesto com as aves que comprara no mercado de Martinville, achei-me tão feliz, sentia que ela me havia desembaraçado tão perfeitamente daquelas torres e do que ocultavam atrás de si, que, como se fosse eu próprio uma galinha e acabasse de pôr um ovo, pus-me a cantar a plenos pulmões.”
Passei por emoções exatamente iguais quando terminei de filmar O Espelho. Recordações da infância que por tantos anos não me haviam deixado em paz, de repente desapareceram como que por encanto, e finalmente deixei de sonhar com a casa em que vivera tantos anos atrás. (…)
O Espelho é também a história da velha casa onde o narrador passou a sua infância, da fazenda onde ele nasceu e onde viveram seu pai e sua mãe. Esta casa, que com o passar dos anos se transformara em ruínas, foi reconstruída, “ressuscitada” a aprtir de fotografias da época e dos alicerces que ainda sobreviviam. Assim, acabou ficando exatamente como fôra quarenta anos antes. Quando mais tarde levamos até lá minha mãe, que passara a infância naquele lugar e naquela casa, sua reacão superou todas as minhas expectativas. O que ela experimentou foi uma volta ao seu passado, e isso me deu a certeza de que estávamos no caminho certo. A casa despertou nela os sentimentos que o filme pretendia expressar…”
in Esculpir o Tempo, Tarkovski.
posted by Luís Miguel Dias domingo, outubro 19, 2003