sexta-feira, outubro 17, 2003
“O Espelho”, de Andrei Tarkovski, na Janela Indiscreta
"Mas você… como pôde saber disso?"
"Mas então eu encontrava pessoas que se haviam deixado impressionar pelo meu filme, ou recebia cartas que me pareciam uma espécie de confissão sobre as suas vidas, e começava a compreender qual era o objectivo do meu trabalho e a ter a consciência da minha vocação: deveres e responsabilidades para com as pessoas, se assim o preferirem. (…)
Uma espectadora de Gorki escreveu: “Obrigado por O Espelho. Tive uma infância exatamente assim. … Mas você… como pôde saber disso?
“Havia o mesmo vento, e a mesma tempestade… `Galka, ponha o gato para fora`, gritava a minha avó. … O quarto estava escuro… E a lamparina a querosene também se apagou, e o sentimento da volta de minha mãe enchia-me a alma… E com que beleza você mostra o despertar da consciência de uma criança, dos seus pensamentos!... E, meu Deus, como é verdadeiro … nós de fato não conhecemos o rosto das nossas mães. E como é simples… Você sabe, no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela iluminado pelo seu talento, senti pela primeira vez na vida que não estava sozinha… .”
Passei tantos anos ouvindo dizer que ninguém queria os meus filmes, e que os mesmos eram incompreensíveis, que uma resposta assim enchia-me a alma de alegria, dando um sentido à minha atividade e reforçando a minha convicção de estar certo e de que o caminho que escolhera nada tinha de fortuito.
Um operário de uma fábrica de Leningrado, estudante de um curso noturno, escreveu-me: “Meu pretexto para escrever-lhe é O Espelho, um filme sobre o qual nem posso falar, pois eu o estou vivendo.
“É uma grande virtude saber ouvir e compreender… Este, afinal, é um dos fundamentos básicos das relações humanas: a capacidade de entender as pessoas, de perdoar-lhes as faltas involuntárias, os seus defeitos naturais. Se, ao menos uma vez, duas pessoas forem capazes de experimentar a mesma coisa, poderão sempre compreender-se reciprocamente. Mesmo que uma delas tenha vivido na era dos mamutes, e a outra na era da electricidade. (…)
E mais uma carta: “Quem lhe escreve é um homem já de idade avançada, aposentado, mas com grande interesse pelo cinema, muito embora a minha profissão nada tenha a ver com as artes (sou engenheiro radioeletricista).
“Estou aturdido e desorientado com o seu filme. O seu dom de penetrar no mundo emocional de adultos e crianças, de fazer-nos sentir a beleza do mundo que nos circunda, de mostrar os valores autênticos, e não os falsos, desse mesmo mundo, de fazer com que cada objeto represente seu papel, de transformar cada detalhe do filme num símbolo, de exprimir um significado filosófico geral a partir de uma economia de meios, de encher de música e poesia cada imagem de cada fotograma… são todas qualidades típicas do seu, e exclusivamente do seu, estilo de exposição… (…)
Uma operária de Novosibirsk escreveu: “Na semana passada, vi o seu filme quatro vezes. E não fui ao cinema simplesmente para vê-lo, mas, também, para passar algumas horas vivendo uma vida real, com artistas e seres humanos verdadeiros. … Todas as coisas que me atormentam, tudo o que não tenho e desejaria ter, que me deixa indignada, enojada ou que me sufoca, todas as coisas que me iluminam e me aquecem, e pelas quais vivo, e tudo aquilo que me destrói – está tudo ali, no seu filme; vejo-o como se num espelho. Pela primeira vez na minha vida um filme tornou-se algo rel para mim, e é por essa razão que vou vê-lo: quero impregnar-me dele, para que possa realmente sentir-me viva."
in "Esculpir o Tempo", Tarkovski, edição brasileira Martins Fontes.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, outubro 17, 2003