A montanha mágica

quarta-feira, outubro 22, 2003

"O Espelho", de Andrei Tarkovski, na Janela Indiscreta III


Leonardo da Vinci, Ginevra de' Benci, c. 1474.

“Vejamos, agora, o retrato feito por Leonardo da Jovem com um Ramo de Zimbro, que usei em O Espelho, na cena do breve encontro do pai com os filhos, quando ele vem para casa em licença.
Há nas imagens de Leonardo duas coisas fascinantes. Uma delas é a extraordinária capacidade do artista examinar o objeto de fora, do exterior, com um olhar que paira por cima do mundo – uma característica de artistas como Bach ou Tolstoi. A outra consiste no fato de o quadro nos atingir simultaneamente de duas maneiras opostas. É impossível exprimir a impressão final que o quadro produz em nós. Nem mesmo é possível dizer com certeza se gostamos ou não da mulher, se ela é simpática ou desagradável. Ela é ao mesmo atraente e repugnante. Há nela algo de indizivelmente belo e ao mesmo tempo repulsivo, satânico; satânico, porém, não no sentido romântico e sedutor do termo – trata-se, pelo contrário, de algo para além do bem e do mal, de fascínio com um signo negativo. O retrato tem um elemento de degeneração – e de beleza. Em O Espelho, precisávamos dele pra introduzir um elemento atemporal nos momentos que se sucedem uns aos outros diante dos nossos olhos e, ao mesmo tempo, para confrontar o retrato e a heroína, enfatizando nela e na atriz, Margarita Terekhova, a mesma capacidade de ser simultaneamente encantadora e repugnante…
Se tentarmos analisar o retrato de Leonardo, decompondo os seus elementos, a tentativa não funcionará. Ou, de qualquer modo, não explicará nada, pois o efeito emocional exercido sobre nós pela mulher retratada é poderoso exatamente por ser impossível descobrir nela qualquer coisa que possamos privilegiar de modo definido, é impossível extrair qualquer detalhe do contexto geral, destacar quaquer impressão momentânea em detrimento de outra e fazê-la nossa, ou chegar a um equilíbrio quanto à maneira de olhar a imagem que nos é apresentada. E assim, abre-se diante de nós a possibilidade de uma interação com o infinito, uma vez que a grande função da imagem artística é ser uma espécie de detector do infinito… em direção ao qual nossa razão e nossos sentimentos elevam-se num ímpeto alegre e arrebatador.
Este sentimento é despertado pela integridade da imagem: ela nos atinge precisamente pelo fato de ser impossível decompô-la. Considerada isoladamente, cada uma de suas partes estará morta – ou, pelo contrário, o elemento mais íntimo talvez revele as mesmas características da obra completa e acabada. (…)
Muitas são as coisas que podemos ver no retrato, e, ao tentarmos apreender-lhe a essência, vagaremos por labirintos sem fim, sem jamais encontrarmos a saída. Encontraremos grande prazer na constatação de que não podemos exauri-lo ou esgotá-lo. Uma verdadeira imagem artística oferece ao espectador uma experiência simultânea dos sentimentos mais complexos, contraditórios e, por vezes, mutuamente exclusivos.”

Tarkovski, “Esculpir o Tempo”.

posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, outubro 22, 2003

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