terça-feira, outubro 07, 2003
LITERATURA
"Vasculhando no meio dos meus Papéis desenterrei recentemente outra carta, do meu primo David Partington - preservada por milagre, porque não guardo cartas e não guardei nenhuma das do meu pai.
A carta não tem data. Mas o meu primo refere-se ao efeito da paternidade no meu novo livro, que nomeia. Os rapazes nasceram em 1984 e o novo livro era Einstein's Monsters: 1987. Julian Barnes disse que os romancistas não escrevem «sobre» os seus temas e figuras, mas «em redor» deles, o que é muito o que eu próprio sinto. 0 livro consistia em cinco contos em redor das armas nucleares e um texto introdutório que era decididamente sobre elas. Claro que dos meados aos últimos anos oitenta decorreu uma das fases mais quentes da Guerra Fria: o tempo da construção, ou do de Reagan; «o império do mal»; a Guerra das Estrelas («a força está connosco»). Gorbachev ainda não tinha mostrado o seu pulso e foi por que Reagan acusou a língua russa de não ter palavra para détente.
Isto é da polémica introdução, intitulada «Capacidade de pensar»:
Quando contei [ao meu pai] que estava a escrever sobre armas nucleares, ele disse, num jeito cantado, «Ah. Suponho que és..."contra elas", não?» Épater les bien-pensants é a sua regra... Souconsideravelmente ríspido para o meu pai, mais sobre a questão armas nucleares do que sobre qualquer outra, mais ríspido do que nos meus tempos de juventude. Normalmente, acabo por dizer alguma coisa como «Bem... vamos ter que esperar que os filhos da puta morram uns após outros». Ele acaba normalmente por dizer algo como «Pensa nisso. Só por fecharmos o Arts Council podemos ter aumentado significativamente o nosso arsenal. As bolsas para poetas podiam sustentar um submarino nuclear por um ano. 0 dinheiro gasto numa única récita do Rosenkavalier comprava-nos mais uma ogiva de neutrões. Se fechássemos todos os hospitais de Londres podíamos... » A sátira é de certo modo adequada, pois limito-me a rondar as armas nucleares. Não sei o que fazer quanto a elas.
Depois de ler as Letters, sei agora que Kingsley ficava genuinamente e, ao que me parece, jocosamente - furioso por eu tomar esta posição. Escreveu a Robert Conquest a dizer que eu sou «um tolo de um raio» por ter chegado ao esquerdismo» tão tarde (um tolo de um raio, no seu léxico, significava mais menos alguém suficientemente inteligente para ter a obrigação de saber). No fim da semana em que saiu Einstein's Monsters levei o meu filho de três anos como de costume, ao almoço de domingo em casa do meu pai; e Louis, recordo-me, ficou irritado com a nossa conversa de abertura:
- LI AQUELA TUA COISA SOBRE ARMAS NUCLEARES E É ABSOLUTAMENTE IMBECIL DIZER 0 QUE DEVíAMOS FAZER COM ELAS.
- BEM, NAO ME ADMIRA PORQUE, AO CABO DE QUARENTA ANOS, MAIS NINGUÉM SABE 0 QUE HÁ-DE FAZER COM ELAS.
Pensando agora nisso, ele estava genuinamente furioso: mais hostil do que nunca o vira. 0 meu irmão Philip faz uma imitação impecável de Kingsley nesse estado: a cabeça toda a vibrar, os olhos perigosamente dilatados, a boca tensa com um violento falso sorriso e (muito revelador), as unhas dos indicadores esgravatando, quase a fazer sangue, as cutículas dos polegares..."
AMIS, Martin (trad. Telma Costa), "experiência", Lisboa, Editorial Teorema Lda., 2000, p.p. 70-71.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, outubro 07, 2003