sábado, outubro 11, 2003
LITERATURA
"Os nossos sentimentos sobre armas nucleares dependem, entre outras coisas da data em que nascemos. Eu sei exactamente o que me aconteceu. Em criança, o meu professor primário mandava-me regularmente deitar no chão e ter esperança que o tampo da minha carteira me protegesse do fim do mundo; sentia a violência e o absurdo para além do admissível e expulsei a coisa minha consciência. Depois a paternidade, aos trinta e cinco (1) . Os instintos protectores estimulados levaram-me a sentir de novo essa ansiedade encristada ou recalcada: essa ansiedade silenciosa. E os sentimentos subsistiam, havia contos para escrever.
«Lembras-te», escreveu o meu primo nessa carta,
como costumávamos falar, quando tínhamos doze anos (2) sobre o
que faríamos se de súbito toda a gente menos nós desaparecesse,
mas deixando o mundo intacto? Contigo em Cambridge e eu em
Gretton entraríamos em contacto para nos encontrarmos. Até
devemos ter feito um plano.
Se me lembro? Lembro-me, David. Lembro-me - lembro-me de tudo. Porque tudo isto está ligado no meu espírito. E lembro-me de pensar em ti e na tua irmã mais nova, e na tua mãe quando escrevi:
Estou farto delas - estou farto das armas nucleares... Elas estão
aqui e eu estou ali - elas são inertes, eu estou vivo - e contudo
continuam a dar-me vómitos, fazem-me sentir enjoo no estômago,
fazem-me sentir como se um filho meu estivesse na rua há muito,
muito tempo e já estivesse a escurecer.
(1) Kingsley, aos trinta e nove anos (numa carta para Larkin): «... por cristo, acabo de ouvir uma sirene de ataque aéreo & sinto tanto medo que até posso desmaiar... Estão só a experimentar a sirene, espero, a certificar-se de que funciona quando precisarem dela. Prefiro não pensar nisso tudo.» Nessa altura, os seus filhos tinham oito e nove anos. Que pensariam e sentiriam sobre tudo isso?
(2) David tinha doze e acabava de fazer treze quando Kennedy lançou o bloqueio a Cuba: 22 de Outubro de 1962."
AMIS, Martin (trad. Telma Costa), “experiência”, Lisboa, Editorial Teorema Lda., 2000, p. 72.
posted by Luís Miguel Dias sábado, outubro 11, 2003