A montanha mágica

domingo, outubro 26, 2003

HOMENAGEM



"«E agora, José?
[…] você marcha, José!
José, para onde?»

Carlos Drummond de Andrade


Ainda hoje estou a ouvir aquele «é». Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto.
Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa (Ele, ou o meu nome, é) que ainda por cima se tornava mais alheio e mais abstracto pela imprecisão parece que..Além disso, a circunstância de ter respondido à Edite com o apelido e não com o meu primeiro nome, o mais cúmplice entre marido e mulher e o único que nos era natural, é outro indício do distanciamento provocado pelo golpe de azar que me destituíra de memória e de passado.
Ele, o Outro. O outro de mim. Em menos de nada, já a Edite falava ao telefone com os médicos sobre esse alguém impessoal que eu estava a começar a ser. Ouvia-a do meio do hall em grande serenidade. Sabia, tenho essa ideia, que alguma coisa se estava a passar comigo, uma coisa oculta, activa, mas nessa altura já principiava a ouvir e a sentir só de passagem, sem registar. (Mesmo assim tinha algum conhecimento da ansiedade que me rodeava: Isto não vai ser nada, creio ter dito à Sylvie quando a descobri no corredor, atenta aos telefonemas da Edite.)
Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.
Dias depois, quando?
Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais, E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido. Assim, ao ver o meu Outro eu a pentear-se com uma escova de dentes num quarto de hospital (conforme me contaram depois) pergunto-me quantas vezes lhe aconteceu aquilo e logo de instante vejo uma enfermeira a aparecer-lhe por trás e a trocar-lhe a escova pelo pente, sem um comentário, sem uma palavra sequer, pura e simplesmente na prática de quem executa uma rotina. E ele a obedecer-lhe sem a menor resistência, ele como que a cumprir a parte que lhe compete nessa rotina. Sempre este jogo?, pergunto.
Talvez. É possível que a aceitação apática do erro se devesse à sua incapacidade mnemónica de relacionar - e portanto de questionar. Possível. Para ele, agora ou ontem tudo era outrora, mundo alheio ou como tal. E desinteresse. O constante e desinteressado desinteresse do homem desabitado de pessoas e de lugares, de tempo e de sentimentos.
Apatia, nesse caso? Nesta fase do processo admito que não se tratasse propriamente de apatia, os médicos é que poderão dizer. Que eu saiba, ele ao princípio sabia-se doente. Ou teria uma percepção limiar da impossibilidade de se conjugar com os outros, uma impossibilidade com a qual convivia numa aceitação natural. Recordo-me até de que ao observar uma coisa que lhe chamasse a atenção a punha instintivamente de parte porque tinha como certo que um segundo depois a iria esquecer.
Ouvir e perceber enquanto ouvia mas apagar prontamente, era o traçado em que ele se movia. Ouvir e apagar logo-logo. Apagar. E ver, ver também contava. Ver pessoas (figuras) através dum vidro mudo e perdê-las acto contínuo. Tudo sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal. Como quem, na desertificação que o invadia, fosse avançando para a morte cerebral num cenário de contornos indiferentes.
Nas Poesias de Drummond de Andrade que tenho acolá na estante, José marchava. Mas para onde, José?"

PIRES, José Cardoso, “De Profundis Valsa Lenta, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, p.p.23-26.

posted by Luís Miguel Dias domingo, outubro 26, 2003

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