A montanha mágica

quinta-feira, outubro 02, 2003

CINEMA


Logo pelas 21 horas, no canal Hollywood:

O INTRUSO (L`innocente, 1976) de Luchino Visconti.




"O último filme de Visconti, O Intruso, que foi rodado entre Setembro de 1975 e Janeiro de 1976 e se estreará postumamente (com uma primeira apresentação no Festival de Cannes de 1976), a menos de dois meses de distância do desaparecimento do cineasta (verificado a 17 de Março, antes, ainda, de completar 70 anos), é, também ele, um filme de morte. Mas corresponde igualmente a um processo singular. Visconti não gostava do romance homónimo de Gabriele D'Annunzio e não escondia a ninguém que o considerava um romance medíocre, como de facto o é no âmbito da própria obra do escritor, onde, a seguir a Il piacere, e em conjunto com Giovanni Episcopo, constitui, 'com maior rigor de método, exactidão de análise, simplicidade de estilo - como escreveria o próprio D'Annunzio - um segundo esforço (sendo o primeiro, precisamente, Giovanni Episcopo), instintivo de um artífice inquieto com vista a uma renovação final'. Convencido no entanto, que 'os bons filmes não nascem de bons livros' e que o referido romance, de 1891, constituiria, em 1976, um excelente argumento cinematográfico, Visconti trabalhou nele, nomeadamente a nível do guião (de parceria com Suso Cecchi D'Amico e Enrico Medioli), fazendo-lhe alterações e introduzindo-lhe elementos novos, característica esta, aliás, comum a quase todas as melhores inspirações literárias do cineasta.



0 Intruso é, como se sabe, a radiografia psicológica (neste aspecto fortemente citada pela literatura russa, em especial Dostoievski, que D'Annunzio admirava) de uma degradação criminosa, a de Tullio Hermil, um aristocrata que, depois de ter obrigado, durante anos, a própria mulher, Giuliana, a ser vítima do seu egoísmo (tendo como lema uma ideologia erótica explicitamente reaccionária: 'Ser constantemente infiel a uma mulher constantemente fiel'), volta para ela, num renovado arrebatamento da paixão amorosa e descobre, nessa altura, que, 'num momento de fraqueza', a sua paciente ccônjuge tivera uma apaixonada relação extraconjugal e ficara grávida. Após os meses de febril tormento que representam, para ele, a gravidez, Tullio supera, ou julga poder superar, o obstáculo, matando o inocente (ou o intruso, como ele também lhe chama e que é, igualmente, o título do romance - L'intru, precisamente - na sua primeira tradução francesa, início do êxito do autor em Paris). A história, contada na primeira pessoa pelo protagonista, acaba com o funéreo delírio do enterro do recém-nascido.



Distanciando-se apreciavelmente do texto literário, Visconti explicita, sobretudo, a dialéctica dos sentimentos que aprisionam Tullio (que tem em Giancarlo Giannini um excelente intérprete), concretizando de modo admirável a figura da amante deste (Jejennifer O'Neil) que, no romance, é apenas uma longínqua sombra, só ao de leve evocada. Suprime, depois, a situação familiar e social do protagonista, eliminando as duas filhas que, no romance, Tullio tivera com Giuliana (Laura Antonelli). Dedica, assim (sobretudo na primeira parte do filme), extensas áreas descritivas aos ritos sociais da aristocracia romana e executa uma nítida viragem em relação ao romance, fazendo do comportamento tormentosamente apaixonado de Giuliana para com o marido um truque para poder ter a criança e mantê-la viva (de tal forma que, ao aperceber-se do crime do marido, a mulher se revolta contra ele, atirando-lhe à cara o ódio que não pode mais conter). 0 sinal mais significativo - e o mais vistoso, também - de funcional leitura crítica que Visconti decidiu fazer de um texto que, como já referimos, ele próprio considerava medíocre mas sintomático, está na conclusão a que chega a história filmada: o romance de D'Annunzio acabava - já o dissemos - com o enterro do inocente, isto é, a conclusão, extranarrativa, estava no próprio romance, implícita na autoacusação orgulhosa, na confissão daquilo que a história (que, não por acaso, era contada na primeira pessoa) queria documentar ('A justiça dos homens não pode tocar-me - afirmava o narrador na introdução - nenhum tribunal deste mundo saberia julgar-me. E, no entanto, sinto necessidade de acusar-me, de confessar-me. Sinto necessidade de revelar o meu segredo a alguém'). 0 filme de Visconti acaba, pelo contrário, com o tiro de pistola com qual Tullio se suicida, depois de uma noite de amor com - e confissão a - Teresa Raffo, cumprindo um gesto extremo de autopunição por ter falhado a relação com as duas mulheres amadas que é, simultaneamente, um gesto de autoafirmação extremista e exibicionista.



Digamos, pois, que o romance de D'Annunzio L'innocente é reproposto, no filme homónimo de Visconti, com uma dupla leitura diacrónica. Por um lado, à luz dos textos precedentes de D'Annunzio e da subsequente viragem do escritor, que abandonou para sempre a via (precária e, aliás, só aparente) do romance psicológico-humanitário, para enveredar pela'renovação final' da ideologia do super-homem que já aparece, in nuce mas perfeitamente delineada, na figura de Tullio Hermil. Por outro lado, à luz de uma motivação mais complexa e de uma conclusão diferente da história, com um enredo reduzido e, portanto, reconstruído mediante a introdução de uma série de dados inovadores que alteram o seu significado, para restituí-Ia, qual história vista de hoje, como a aventura de uma autodestruição, tenebroso indício de um crepúsculo dos deuses infinitamente repetido, embora não nibelúngico.



História, pois, de outro vencido, o filme propõe, uma vez mais, o leitmotiv de toda a obra de Visconti: a derrocada de um mundo, de urna sociedade e de uma época, vista através da derrota de um ou mais indivíduos que representam a sua classe hegemónica. O esquema, por assim dizer ideológico, que rege, de forma diversa mas explícita, muitos filmes de Visconti, desde Sentimento, a altíssimo nível, até Violência e Paixão, a nível, sem dúvida, inferior (mas também Il lavoro, 0 Leopardo, Vaghe stelle dell'Orsa, Os Malditos, Morte em Veneza, Ludwig) está, pois, implícito também no décimo oitavo e último título da filmografia de Visconti. E, neste sentido, são igualmente funcionais, quer o trabalho de contaminação intertextual e de leitura crítica do texto que está na base do filme, quer o trabalho de evocação descritiva dos salões romanos, excelentemente reconstituídos pelos décors de Mario Garbuglia, pelo guarda-roupa de Piero Tosi e pela fotografia de Pasqualino De Santis. É, aliás, aqui, sobretudo aqui, que O Intruso oferece o seu melhor: nas visões fantasmáticas de um'belo mundo' de antiquário, onde os zombies vestidos de negro sobressaem, imóveis, sobre fundos de um vermelho intenso, sussurando palavras inaudíveis, que a música de Chopin e Liszt transmite, no piano que a toca, como se de um eco de glacial eternidade se tratasse. Mas o olhar de Visconti só de vez em quando mantém esta distância, quando os protagonistas estão mergulhados nos ritos fúnebres da sua sobrevivência social. Em linhas gerais, pelo contrário, esse olhar endurece-se num convencional emaranhado de adultérios - mal compensado pelos diálogos que, embora expurgados das muitas, e vazias, 'palavras belas e sonantes' do esteticismo de D'Annunzio, continuam a ser fúteis e inutilmente amaneirados - prevalece uma templação demasiado arqueológica para não se arriscar a ser igualmente inerte. À semelhança de um belíssimo ensaio de restauro literário e cenográfico que, porém. No seu conjunto, se arrisca a desmentir, em boa parte, a nível da forma, aquilo que provavelmente ambicionava comunicar a nível do conteúdo. Tudo isto apesar de querermos voltar a sublinhar que, quando se detém nas reuniões e convívios da alta burguesia em ascensão, quando descreve os seus ritos de ordem e desordem, quando representa a sua formal e a sua grosseria existencial, quando mostra as filosofias e comportamentos da Itália do final do século, a câmara de Visconti sabe ainda ser de uma intensidade estonteante e o ciclo do cinema do cineasta consegue fechar da forma mais coerente."
texto in VISCONTI, "Violência e Paixão: Os filmes de Luchino Visconti", Porto 2001, p.p. 143-148.

posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, outubro 02, 2003

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