A montanha mágica

quarta-feira, setembro 24, 2003

Na televisão, neste início de outono...



Da penumbra do esquecimento, para três horas de televisão (RTP 1) dedicadas a José Cardoso Pires.
O filme "O Delfim", de Fernando Lopes e depois uma excelente conversa entre Clara Ferreira Alves e José Cardoso Pires, realizada durante o Outono e Inverno de 1997. A sessão tem início às 21h e 40m.



"O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:
Visto da aldeia onde me encontro, é um terreiro nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia - é de facto, grande de mais. É inútil, dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da Igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a a tarde é dela. À tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. (...)

«Mulher inabitável...» Gosto, é frase altiva, a prumo - de título para alegoria:

A MULHER INABITÁVEL

Na brancura de uma folha de papel (que é indiscutivelmente um território de sedução, um corpo a explorar), no centro e bem ao alto, planta-se a frase. Ela apenas, o título, como um diadema de dezassete letras. Só depois é que virá a homenagem (com ou sem dedicatória: «Maria das Mercês, 1938-1966»), inteiramente preenchida por uma romãzeira em flor que há no quintal da Pensão. E será um desenho meticuloso todo feito de articulações, por meio de folhas recortadas, cada qual com o seu pensamento.
A romãzeira está brava, assaltada por legiões de formigas. Apesar disso, cabe-lhe a homenagem, porque, nesta época do ano e nesta desolada terra, é a única exclamação da Natureza. Árvore bravia, de sombra rendilhada, que já foi sumo e que hoje fica na flor: à volta não vejo senão pedras e formigas, restos de comida e cães à espera dos donos. E no meio, ela. Ela, enchendo a página, como um herbário escolar, com a folhagem tatuada de injúrias (do Velho), caprichos de interrogações nas flores, pontinhos a formigar. É um cântico de vermelho exposto ao sol outonal, esta árvore, e sustenta nos braços cor de cobre toda uma abóboda de chagas em alegria. Tem, para finalizar, a inestimável utilidade da beleza - coisa importantíssima."

José Cardoso Pires, "O Delfim".


Do argumentista do filme.



"A leitura de um cinéfilo"


Elisabete França


Instrumentista. Obediente à batuta do realizador-chefe-de-orquestra
O professor e analista político surpreende na função de argumentista d'"O Delfim", a servir obra e projecto alheios com humildade.

Um dos aspectos a que as pessoas se rendem no filme feito d'O Delfim é a excelência do argumento, mas o Vasco Pulido Valente não é exactamente um argumentista de cinema...

Em tempos escrevi o argumento para uma série de 12 episódios, a realizar pelo Fernando Lopes na RTP, que, no entanto, nunca foi filmada. Também escrevi a versão para TV do Aqui d'El Rei, do António Pedro de Vasconcelos, que depois não ficou satisfeito e arranjou outro argumentista.

Agora com o trabalho à vista, o "outsider", que, para mais, já escreveu contra a qualidade de argumentos no cinema português, está inseguro ou satisfeito com os resultados?

Eu estou muito satisfeito com o trabalho e nunca me senti inseguro. Tenho uma grande afinidade intelectual com o Fernando Lopes e o meu critério nunca passou por saber se o filme teria sucesso ou não teria sucesso, mas, sim, se eu conseguia ou não conseguia responder às exigências dele. Um realizador de cinema é como um chefe de orquestra, que coordena os trombones, os clarinetes, os violoncelos, etc., exactamente como o realizador de cinema tem de controlar muita gente, actores, director de fotografia e de som e também o argumentista, para fazer com isso um todo harmónico. De modo que o papel do argumentista é seguir as indicações do chefe de orquestra, o melhor que pode.

Como é que depois, a sós, o argumentista trabalhou nesse sentido o romance de José Cardoso Pires?

Foi um trabalho de transpor a escrita para linguagem fílmica, com o máximo de fidelidade possível ao livro e de acordo com a visão do realizador.

Foi fácil coincidirem?

Sou amigo do Fernando Lopes, que é uma pessoa inteligente, e é fácil trabalhar com um amigo.

Aquilo que encontrou e recriou na transposição foram fantasmas de um país-lagoa estagnado, imagens de um tempo histórico ou tudo isso um pouco mas ainda reconhecível hoje, aqui?

O encontro foi com uma obra de arte universal. Não li O Delfim como um tratado de história sobre os anos 60, embora as marcas da História lá estejam, como estão nas obras do Balzac e de tantos outros.

Tratando-se de transpor para linguagem fílmica, a leitura-escrita ia-se fazendo em função de imagens? Com alguns referentes cinematográficos particulares?

Era também a leitura de um cinéfilo e com certeza que, quando estava a escrever, os milhares e milhares e milhares de filmes que vi me influenciaram. Mas influenciou-me, sobretudo, a vontade do Fernando Lopes. Tentei perceber, ao mesmo tempo, como podia transpor o romance para uma linguagem fílmica e o que é que o Fernando Lopes queria fazer, qual era o filme que ele tinha na cabeça.

O resultado decorre de uma comunicação regular...

Diária, diária, diária. A tal ponto que há certas coisas no filme que nem ele nem eu sabemos quem as pensou primeiro.

Fala-se que se preparam para voltar a trabalhar em conjunto. Há alguma coisa concreta em marcha?

É possível, é possível. Mais do que possível, é natural.


Do realizador do filme



O homem que filmou "O Delfim"

Eurico de Barros

Muitos realizadores, incluindo o espanhol Carlos Saura, tentaram adaptar ao cinema "O Delfim", de José Cardoso Pires, mas foi Fernando Lopes quem, finalmente, o conseguiu.

Os seus filmes são quase todos adaptações de livros. Prefere filmar livros que lhe agradem particularmente, ou tem a ver com o facto de em Portugal não haver tradição de argumentistas que escrevam originais?

Eu tenho a fama de ser um cineasta de livros. Fiz a Abelha na Chuva, fiz o Mário Zambujal, o Tabucchi... tudo livros muito diferentes. Por acaso, neste momento estou a escrever um argumento original com o Vasco Pulido Valente. Mas gosto muito de trabalhar sobre livros. Os livros têm uma estrutura, têm personagens - particularmente O Delfim, que apresenta uma grande estrutura romanesca e personagens muito fortes. Por exemplo, em Uma Abelha na Chuva, o que me interessou mais provavelmente nem sequer foi a Abelha-livro, que toda a gente diz ser muito cinematográfico. O que me interessou foi a micropaisagem, a poesia do Carlos de Oliveira. No caso do José Cardoso Pires, o que me interessou muito, e obviamente, foi a época em que ele escreveu o livro, foi a personagem do Tomás Palma Bravo e foi fazer "subir" a personagem da Maria das Mercês, que no livro é excessivamente diluída, e fazer dela uma mulher com desejos e opressões de desejos. Os livros são sempre um bom suporte para fazer filmes.

Fale-me do seu interesse pela época em que decorre "O Delfim", uma época que você viveu e conhece bem.

No Delfim há também os fantasmas. São fantasmas de uma época histórica, pelos quais eu tenho alguma grande ternura. Não tenho uma leitura horrível daqueles fantasmas, bem pelo contrário. Acho que eles fazem parte da nossa vida e, como diria o Vicente Jorge Silva, eu quis deixar de lado a "tralha" ideológica que poderia ser lida na história, e que não me interessa.

"O Delfim" não é um filme abertamente "ideológico". É claro que o Fernando Lopes, o Vasco Pulido Valente e o Cardoso Pires mostram algumas das coisas desagradáveis daquela época, mas por outro lado, e pelo menos no filme, nota-se, tal como já disse, como que uma ternura melancólica por aqueles tempos e pelo estilo de vida daqueles que criticam.

É um pouco como o Bernardo Bertolucci: Prima Della Revoluzione. Ou seja, Talleyrand: "Quem não viveu os tempos antes da revolução não conheceu a doçura de viver." De certo modo, é isto.

Também há, segundo creio, uma ligação afectiva sua ao livro, que tem a ver com a sua amizade com o escritor. Porquê adaptar este livro e não outro de José Cardoso Pires?

Este é muito específico porque foi um livro que viveu comigo durante muitos anos. Desde que o Zé o escreveu - e eu vi-o a discutir o manuscrito com o Carlos de Oliveira, por exemplo -, e como diz o George Steiner, "há uns livros que entram dentro de nós e que nos arrumam ou desarrumam a casa", a nossa casa interior. E O Delfim sempre me desarrumou a casa interior. Não foi por acaso que durante tantos anos eu quis fazer o filme e só finalmente o consegui agora. E não fui só eu: o Fonseca e Costa quis, o Carlos Saura, muita gente o quis fazer. Não era fácil. Só depois de ter trabalhado com o Vasco - que eu acho que fez um trabalho notável de adaptação, do ponto de vista de inteligência, de "leitura da voz" do Cardoso Pires, como ele diz - é que foi possível chegar ao fim. Acho que quando se pega num livro, a voz dele tem que nos cair cá dentro. E depois temos que trabalhar sobre ela. E é preciso deixar de parte a tal tralha que os livros também têm.

Chegou a falar com José Cardoso Pires sobre a adaptação do livro ao cinema?

Sim, tivemos uma longa conversa de horas, que foi aliás gravada - e eu não sei onde pára a gravação. Eu dei-lhe para ler um poema do Auden, quando assinei o contrato para fazer a adaptação. E disse-lhe, "Zé, tenho aqui um poema do Auden que se chama Detective Story para leres". No fundo, este poema é sobre a ideia da felicidade e da infelicidade. E o Zé, que conhecia bem o Auden mas não o poema, diz-me: "Eu acho extraordinário que tu pegues por aqui." Ou seja, há uma história policial no Delfim, há várias versões do que acontece, é um bocadinho Rashomon, e depois, lá no fundo, o que está lá é isto: porque é que somos infelizes, porque não somos felizes? Foi por isso que eu quis fazer o filme.

O trabalho de argumento foi mais de Vasco Pulido Valente, ou foi partilhado pelos três, ele, você e a Maria João Seixas?

Não, o grande trabalho foi do Vasco, e é notável. Uma síntese extraordinária do livro - ele conhece muito bem a obra do Zé Cardoso Pires -, da voz do autor. Ele consegue apanhar o osso do livro, o essencial. Na escrita do Zé Cardoso Pires, o que existe é o substantivo. E o que eu tentei fazer foi que o filme correspondesse a esse osso, que fosse tão competentemente certo como o que ele fazia na escrita. E isso faz falta no cinema português. Essa competência falha muitas vezes no nosso cinema. É preciso tê-la e eu não tenho vergonha de a ter. Um filme não é só um produto de autor, é também um espectáculo. Tem de dar sentimentos, grandes sentimentos, e é preciso que todos que nele estão envolvidos trabalhem nessa ordem.

E neste caso, não lhe faltou nada. Teve a equipa que quis, os actores que quis, Eduardo Serra na fotografia...

O Delfim teve um trabalho de produção extraordinário. O Paulo Branco apostou a sério no filme. É preciso ter um bom produtor. E um bom produtor não é só aquele que monta financeiramente um filme. É aquele que acredita no filme. E ele acreditou. Eu disse-lhe, quero esta e esta equipa. Quero ter o Eduardo Serra, o Jacques Witta, o Gérard Rousseau, o Philipe Morel e quero ter o Vasco. Só assim é que se podem fazer filmes. Como diria o Malraux: Par ailleurs, le cinéma est aussi une industrie. E eu não tenho vergonha disso. Os filmes são parte de uma indústria e isso tem que ser assumido no cinema português. É mal assumido, em geral. É preciso ter boa fotografia, grandes actores, etc, porque senão, não faz sentido. Com os subsídos e as co-produções que temos há muito dinheiro envolvido, e há que dar resposta a isso. Os filmes têm que corresponder ao dinheiro que têm investido. Uma das coisas mais extraordinárias do cinema americano é que eles percebem isso. E é assim que fazem os filmes que fazem.

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posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, setembro 24, 2003

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