sexta-feira, agosto 08, 2003
Sentado debaixo do grande terebinto XII
"Tratavam da criação do mundo e do homem; do combate de Marduk com o dragão; da elevação de Istar da escravidão à dignidade régia e da sua descida ao Inferno; da erva fecundante e da água vital; dos acontecimentos assombrosos sucedidos a Adapa, a Etana e àquele Gilgames, cujo corpo, apesar de ser de carne divina, não conseguira alcançar a imortalidade. José lia todas essas coisas, correndo o indicador pelas tábuas, e copiava-as com recatada compostura, erecto, abaixando apenas as pálpebras. Lia e copiava a história da amizade de Etana com a águia que o transportara até ao céu de Anu, atingindo tal altura que a Terra cá em baixo parecia uma torta e o mar, um cesto de pão. Porém, quando Etana deixara de os avistar, apossara-se dele um tal medo que se precipitara no abismo juntamente com a águia - desfecho bem humilhante. José esperavava haver-se, em caso idêntico, mais airosamente do que esse famoso herói. Mas a história que ele mais apreciava era a de Engidu, o homem dos bosques, que Dirna, mulher da cidade de Uruk, convertera à civiliização, ensinando-o a comer e a beber de maneira decente, a untar o corpo com óleo, a usar roupa, a parecer-se, em suma, com os homens que viviam nas cidades. José achava sobretudo encantador que Dirna, ao fim de seis dias e seis noites de amor, tivesse adestrado o lobo das estepes a ponto de torná-lo susceptível de aperfeiçoamento. Ao recitar esses versos, a língua de Babel saía-lhe dos lábios com tal brilho que Eliezer beijava a orla da túnica do discípulo e manifestava-se:
«Salvé, filho da predilecta! Fazes progressos maravilhosos. Em breve serás Mazkir de um príncipe, ou historiador de um grande rei. Lembra-te de mim quaindo chegares ao teu reino!»
José lá ia depois ter com os irmãos ao campo ou ao prado, a fim de lhes prestar uns serviços leves. Mas eles arreganhavam os dentes, dizendo:
«Aí vem o toleirão com os dedos sujos de tinta. Talvez se digne agora mungir as cabras. Ou virá ele só para ver se cortamos algum naco dos carneiros para a nossa panela? Ah, se dependesse só de nós, não voltava com os ossos inteiros. 0 medo que temos de Jacob é que o salva!»"
Thomas Mann, "O Jovem José".
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, agosto 08, 2003