quinta-feira, agosto 28, 2003
Sentado debaixo do grande terebinto XIV
"É muito fundo o poço do passado. Não seria melhor dizermos que é um poço sem fundo?
Sim, um poço sem fundo, se o passado a que nos referimos (e talvez só neste caso) é o da espécie humana, a enigmática essência de que fazem parte as nossas existências, naturalmente insatisfeitas e sobrenaturalmente desditosas. O mistério dessa enigmática essência abrange sem dúvida, o nosso próprio mistério – é o alfa e o ómega de todos os nossos problemas – ligado estreitamente a tudo o que dizemos, dando uma significação a todos os nossos esforços. Quanto mais fundo sondamos, quanto mais longe buscamos o mundo inferior do passdo, mais as remotas origens da humanidade, a sua história e a sua cultura se nos revelam imprescutáveis. Quanto mais longe nos aventuramos nas sondagens, mais distante nos parece o fundo do poço e, à medida que vamos descobrindo novos pontos de apoio e atingindo aparentes metas, mais longe temos de levar a nossa sonda, que se estira e aprofunda cada vez mais, como se tudo quanto encontramos de investigável estivesse preparado para zombar das nossas laboriosas pesquisas, tal como um navegador que segue ao longo da costa e não pode prever o termo da viagem. Após cada descoberta, ele avista inesperadamente, por trás de um promontório, outro promontório, e assim se vê forçado a cobrir novas distâncias.
Há portanto origens provisórias constituídas praticamente, efectivamente, pelos primórdios da tradição especial mantida por determinada comunidade, por um povo, ou uma simples crença de família, e a memória, embora certa de que as profundezas não estão suficientemente sondadas, fia-se nessas origens."
Thomas Mann, "José e seus Irmãos".
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, agosto 28, 2003