sábado, agosto 30, 2003
Na Montanha II
"Hans Castorp perguntava-se o que lhe aconteceria lá em cima. Talvez fosse imprudente e prejudicial para ele, que nascera a poucos metros acima do mar e se habituara ao ar da sua terra, deixar-se transportar tão subitamente a esses sítios extremos, sem pelo menos se demorar por alguns dias num lugar de altitude média. Ansiava por chegar ao fim da viagem; pois, uma vez lá em cima – pensava – devia viver-se como em toda a parte, sem que lhe fossem recordadas, como agora, durante a escalada, em que impróprias esferas se encontrava. Hans Castorp olhou pela janela. O comboio serpenteava, sinuoso, através de um desfiladeiro estreito. Viam-se os primeiros vagões, via-se a locomotiva vomitando, no seu esforço golfadas de fumo pardo, esverdeado e negro que logo se dissipava. Nas profundidades, à direita, murmuravam cursos de água; à esquerda, pinheiros escuros buscavam por entre os rochedos as alturas de um céu cinzento como pedra. Iam desfilando túneis tenebrosos e, quando reaparecia a luz, rasgavam-se os abismos, seguidos por novos desfiladeiros com restos de neve nas gretas e fendas. (…)
Abriam-se grandiosos panoramas do universo de cumes alpinos, um amontoado solene e fantasmagórico, que o comboio procurava alcançar e galgar; e no próximo meandro da estrada, logo voltavam a subtrair-se ao olhar reverente. Hans Castorp notou que deixara para trás a zona das árvores frondosas, e se não se enganava, também a dos pássaros canoros. Esta ideia de cessação e empobrecimento fez que, acometido de vertigem e de uma ligeira náusea, cobrisse por dois segundos os olhos com a mão. Mas isso passou."
MANN, Thomas (trad. Herbert Caro), "A Montanha Mágica", Lisboa, Edições «Livros do Brasil» Lisboa, 2000, p. 9.
posted by Luís Miguel Dias sábado, agosto 30, 2003