segunda-feira, agosto 25, 2003
Na Montanha I
"Um rapaz simples viajava, em pleno Verão, de Hamburgo, sua cidade natal, para Davos-Platz, no cantão dos Grisões. Ia lá de visita, por três semanas.
Mas de Hamburgo até essas alturas a viagem é longa; demasiado longa, na verdade, para uma estadia tão curta. É preciso atravessar diversos Estados, subindo e descendo, do planalto da Alemanha meridional até à beira do lago de Constança, cujas ondas saltitantes são transpostas de navio, por cima de abismos outrora considerados insondáveis. (…)
Hans Castorp – eis o nome do referido jovem (…) rapaz mimado e franzino que era (…)
Dois dias de viagem apartam um homem – e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida – do seu mundo quotidiano, de tudo quanto costuma considerar os seus interesses, cuidados e projectos; apartam-no muito mais do que esses jovem imaginava no fiacre que o levava à estação. O espaço que, girando e fugindo, se punha de permeio entre ele e a estação de origem, desenrolou forças que geralmente se julgavam privilégio do tempo; de hora em hora o espaço determina transformações íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas que, de certo modo, as ultrapassam.
Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; fá-lo porém, desligando a pessoa humana das suas contingências e pondo-a num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Lete; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e o seu efeito, posto que menos radical, não deixa de ser mais rápido."
MANN, Thomas (trad. Herbert Caro), “A Montanha Mágica”, Lisboa, Edições «Livros do Brasil» Lisboa, 2000, p.p. 7 e 8.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, agosto 25, 2003