domingo, agosto 24, 2003
FRAGMENTO EXTENSO DE UM CONTO 2
"Três desgraçadas que se seguiram, três mortes súbitas - a da mulher, a da filha e a do filho pequeno - foram vistas por ele como um castigo do céu. Decidiu abandonar definitivamente o mundo. Quando completei nove anos, colocou-me na Academia das Belas-Artes e, depois de regularizar as contas com os seus credores, retirou-se para um mosteiro isolado onde não tardou a tomar hábito. Ali, espantou a irmandade com a severidade da sua vida e a observância rigorosa de todas as regras monásticas. 0 superior do mosteiro, ao tomar conhecimento da arte do seu pincel, mandou-o pintar o ícone principal da igreja. 0 humildoso irmão, porém, respondeu-lhe resolutamente que era indigno de pegar no pincel, que o seu pincel fora profanado, que, antes, tinha de purificar a alma por meio de grandes trabalhos e sacrifícios para ser digno de se lançar nessa obra. Não quiseram constrangê-lo. Ele próprio reforçava, para seu uso, a severidade da regra monástica. Por fim, a regra já lhe parecia insuficiente em severidade e rigor. Assim, com a bênção do padre superior, retirou-se para a ermida, ficando totalmente sozinho. Construiu ali uma cela de ramos de árvores, alimentando-se apenas de raízes cruas, carregando com pedras de um lugar para outro ou, então, ficando de pé no mesmo lugar desde o amanhecer ao pôr do sol, com as mãos erguidas para o céu, rezando as suas orações sem parar. Em poucas palavras: procurava todos os suplícios possiveis e a abnegação inconcebível de que apenas se encontram exemplos nas crónicas dos santos. Assim, durante vários anos, mortificou o corpo, aliviando-o ao mesmo tempo com a força vivificante da oração. Um dia, por fim, regressou ao mosteiro e disse firmemente ao superior: «Agora estou pronto. Se Deus quiser, realizarei a minha obra.» 0 tema que escolheu foi - o nascimento de Jesus. Trabalhou nele durante um ano sem sair da cela, alimentando-se frugalissimamente com comida grosseira e rezando sem parar. Transcorrido um ano, o quadro ficou pronto. Era, na verdade, um milagre da pintura. É de notar que nem os irmãos nem o padre superior tinham grandes conhecimentos de pintura, mas todos pasmaram perante a extraordinária santidade das figuras. 0 sentimento de humildade divina e de meiguice no rosto da mãe de Deus reclinando-se por cima do menino Jesus, a inteligencia profunda nos olhos da criança divina que pareciam já entrever qualquer coisa ao longe, o silêncio solene dos reis magos pasmados com o milagre divino e rojados aos pés d'Ele, e, finalmente, o silêncio sagrado, inexprimível, que abrangia todo o quadro - tudo isso emanava tanto a força da beleza e da harmonia que o efeito era mágico. Toda a irmandade caiu de joelhos diante do novo ícone, e o superior, enternecido, falou: «Um homem não pode criar um quadro como este apenas com a arte humana: uma força sagrada, superior, guiou o teu pincel, e a benção dos céus desceu a tua obra.»"
GÓGOL, Nikolai (trads. Nina Guerra e Filipe Guerra), "O Retrato", Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p.p. 88 e 89.
posted by Luís Miguel Dias domingo, agosto 24, 2003